quinta-feira, 8 de junho de 2023

Aforismo 4

  O objeto não é uma ilusão: é a objetivação necessária do sujeito.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Aforismo 3

 A Geografia não pode ser identificada como "a ciência de alguma coisa" (até porque as "coisas" que normalmente se utiliza para identificá-la, tais como espaço, território ou paisagem, de fato, não existem enquanto "coisas"). Tal como toda ciência, a Geografia se identifica pelo seu objetivo e, neste caso, o de desvendar o significado da posição relativa dos elementos que compõem um processo e o significado de tal posição no jogo de determinações que o realiza, tendo como referência inicial a escala do ecúmeno humano, para, com isso, desvendar o próprio processo e, assim, o onde estar dos sujeitos que questionam. O ponto de partida se encontra na pergunta de um sujeito: onde estou?

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Aforismo 2

 O ente necessita saber onde está para se reconhecer enquanto ser de si próprio. A construção de tal saber é, por sua vez, a contradição estrutural de sua própria construção enquanto ser de um ente. É assim que o ser do ente se torna ser para o ente. Ontologia? Não, geografia no seu sentido mais básico… Saber onde se está é reconhecer-se na inevitável relação com o mundo e, portanto, no realizar-se enquanto mundo. É reconhecer-se enquanto parte na composição multiescalar  que nos permite e nos obriga a identificar os processos, no movimento mesmo que faz com que se apresentem para nós enquanto diferencialidade, isto é, enquanto identidade das relações que se materializam enquanto lugar. 

terça-feira, 25 de abril de 2023

Aforismo 1

 O mundo, seja lá o que isso venha a significar, não é matemático e nem matemática. Matemática é uma linguagem, algo que, do ponto de vista de relações de caráter simbólico, nos ajuda a ordenar nosso pensar em relação ao mundo. À medida que pesquisamos e buscamos mais saberes sobre o mundo, temos de reestruturar a matemática que já dominamos, porque, como qualquer linguagem, ela sempre se mostra insuficiente para novas ordenações. O outro lado desse processo é que, também por ser linguagem, ela estabelece os limites do que conseguimos observar do mundo. Condição e limite, eis a chave de como deve ser entendida: uma ferramenta de compreensão e, portanto, parte do mundo, mas que com ele não pode ser confundida pois não pode substituí-lo. 


quarta-feira, 5 de abril de 2023

O MEU LUGAR DE FALA

Estou aqui, neste lugar, tentando imaginar de que lugar de fala eu falo… Confesso que se trata de uma tarefa quase impossível de resolver. Creio que meu lugar, no sentido que se pode inferir de uma proposição como esta, dependerá sempre do assunto que envolve minha fala e, por decorrência, que interesses tenho em proferir qualquer tipo de fala. Trata-se, portanto, de reconhecer que, como sujeito de uma fala, disputo em meio a tantas falas (e, utilizando da mesma proposição, de tantos lugares), sonantes e dissonantes, em relação às minhas. 

Quando, na contramão do que acabei de afirmar, acompanho o uso da expressão, parece que seus utilizadores têm o objetivo de, por alguma condição, pressupor que possuem uma autoridade que, por princípio, lhes foi dada pelo mesmo preconceito que querem combater. 

Muito bem… pensando um pouco mais, estou começando a compreender que esse tal de “lugar de fala” é uma espécie de reivindicação de um sujeito que só reconhece a si mesmo como aquele que possui a argumentação válida sobre um assunto. Trata-se, portanto, de uma espécie de “egocentricidade geográfica”. Não é, portanto, uma referência ao reconhecimento de que todo discurso possui uma geograficidade.

Como bem sabemos, nada impede que uma mulher profira um discurso machista, que um homem profira um radicalmente feminista, que um negro seja fascista e que um branco seja radicalmente antirracista. Todos, por princípio, possuem um “lugar de fala”, mas isso não os legitima aprioristicamente, nem os condena. O significado de um discurso está no próprio discurso e, enquanto tal, deve ser combatido, louvado, compreendido, debatido e assim por diante. A ideia de “lugar de fala” é mais uma consigna que quer eliminar o outro, independentemente de seus argumentos, trata-se de estigmatizá-lo porque ele não fala o mesmo que eu e, portanto, não fala do mesmo lugar que eu.

É mais um jogo de palavras que, como tantos outros, povoam a necessidade de se valorizar algo (a minha fala) para destruir outro algo (a fala daqueles de quem discordo). 

É preciso lembrar que Bolsonaro e suas derivações também reivindicam um lugar de fala, tal como Lula ou o antigo presidente da fundação Palmares.  Assim também o teve Karl Marx, Hitler, Stalin, Trump, Rosa de Luxemburgo, Ligia Fagundes Teles ou José Saramago... todos brancos, mas com olhares muito diferentes sobre a humanidade do humano. Da mesma maneira não era Martin Luther King mais ou menos negro que Idi Amin Dada ou Nelson Mandela. Ser Judeu, cristão ou muçulmano, mulher ou homem (em suas mais de 8 bilhões de sexualidades), negro, branco, pardo ou amarelo, ou qualquer outra identidade desse tipo, não torna nenhum ser humano culpado ou inocente por presunção. Falemos do que podemos falar e isso significa falar de nós mesmos e de como identificados a nossa relação com os outros, com o mundo, com a nossa alteridade seja ela o que seja, podendo, mesmo, ser a nossa própria pessoa. Sempre falamos a partir de nosso próprio olhar, mas nunca falamos exclusivamente sobre nós. Nós somos a possibilidade individual da vida coletiva, isto é, somos a nossa capacidade de subjetivar a objetividade do mundo e, com isso, nos objetivarmos no processo de existir desse mesmo mundo. Esse é o nosso lugar... se não pudermos falar sobre o outro o que nos restaria é o puro e simples silêncio, tal como restou a Hamlet. 

Aquiles, tartarugas e Geografia.

 


Lendo um texto de Hegel[1] (Lições sobre a História da Filosofia, em uma tradução livre para o português), me deparei com os comentários do grande filósofo alemão sobre as proposições feitas por Zenon. Tal como devem lembrar todos os que leram os manuais de filosofia (mesmo os mais simples), o pensador grego nos propôs que se Aquiles fosse correr contra uma tartaruga, jamais a alcançaria. A explicação é simples: antes de alcança-la, Aquiles teria de superar a metade da distância que o separa de sua concorrente. Antes disso, logicamente, ele teria de superar a metade dessa metade e, claro(!), para fazer isso teria de superar a metade dessa última metade... e assim infinitamente. Bom... considerando que o infinito não é transponível, conclui-se que Aquiles jamais ultrapassará a tartaruga e daí a ideia de que o movimento não existe, ele é uma ilusão. Como se vê, alguns filósofos se dedicam a desvendar a ilusão que é a nossa vida (desculpem, o comentário foi irresistível). 

Pois bem... Hegel se debruça sobre este conhecido “paradoxo de Zenon” e imagina um diálogo onde a proposição seria mais ou menos assim: considerando que um objeto qualquer se desloca de um ponto A para um ponto B e onde estará o objeto? Na sequência ele imagina uma serie de respostas, dignas do chamado senso-comum: o objeto está em um ponto qualquer entre A e B; o objeto está em A’ e assim por diante. Frente a todas as respostas imaginadas, Hegel não deixa dúvida: se o objeto está em um ponto, então ele está parado e não em movimento. Assim, ele vai propor que qualquer resposta que possa se aproximar à solução do problema proposto ela teria de ser formulada mais ou menos assim: o objeto está em um ponto qualquer entre A e B deixando de estar. É justamente o adendo “deixando de estar” que, segundo Hegel, preservará a noção de movimento proposta originalmente pelo problema e, consequentemente, superando o paradoxo de Zenon.

Com tais lembranças passei a imaginar que o paradoxo de Zenon poderia, facilmente, ser proposto para o sentido de localização que nos indica a utilização das chamadas coordenadas geográficas e, consequentemente, o fato de que tal noção de localização poderia facilmente se desdobrar no mesmo paradoxo de Zenon, só que agora indicado pelo cruzamento de duas linhas e não mais aquela que indicaria a distância entre Aquiles e a tartaruga. Mais uma vez, portanto, o movimento seria a mais pura e simples ilusão.

De toda maneira, os gps, principalmente os que utilizamos para nos ajudar nos nossos deslocamentos cotidianos, estão sempre nos indicando que “estamos deixando de estar” e , por isso mesmo, mais facilmente respondem à reflexão feita por Hegel, no sentido de preservar a noção de movimento enquanto um dado do referenciamento de lugar geométrico. Vale lembrar aqui, só a título de ilustração, a proposição corroborada pelo filósofo de que uma linha é um ponto em movimento, um plano é uma linha em movimento e, finalmente, um sólido é um plano em movimento.

Voltemos. O que tal referenciamento, no entanto, é insuficiente, pois o sentido geométrico está muito distante de responder pelo sentido geográfico de lugar, mesmo que, de uma maneira ou de outra, possa nos ajudar a construir aspectos de uma resposta. O lugar geográfico é aquele que nos permite reconhecer o onde de cada elemento na realização de um processo determinado e, no caso, tal “onde” se define para muito além da geometria, considerando que ele (o onde) está associado à maneira pela qual os elementos se interdeterminam, e é tal processualidade que define o significado de cada elemento no desenrolar do processo enquanto tal. 

A diferença é brutal: enquanto as coordenadas partem do princípio de que nosso planeta é uma esfera perfeita e toda e qualquer significação de lugar tem como referência algo que não se movimenta, o gps vai nos ensinando que nos deslocamos sobre um fixo[2]. A Geografia, no entanto, ao considerar a necessidade de se desvendar os processos, desvendando o jogo de determinações associado ao lugar de cada elemento que o compõe, deve considerar que todo processo é, ele mesmo, um ser deixando de ser e, portanto, provocando uma redefinição constante de seus elementos, de seus significados e, por consequência, da identificação do lugar.

Por fim, no sentido de uma proposição: a Geografia não estuda o espaço, ela estuda os processos e, para tanto, tem como referência a identificação do significado que o estar  de cada elemento que os compõem possui na sua definição. É uma relação direta com o fenomênico na escala do ecúmeno e, portanto, um sistema de referenciamento da sociedade que pergunta (onde estou? Onde estamos?) enquanto elemento do processo que a define e, portanto, a localiza. 



[1] HEGEL, G. W. F . Lecciones sobre la História de la Filosofia. 3 vols. México:  Ed. Fondo de Cultura Económica, 1985.

[2] Considerando que o fixo também se movimenta, o gps nos posiciona nos obrigando a abstrair o jogo de determinações que nos dá, de fato, a condição de estar e, portanto, sermos, nós mesmos, um lugar.

domingo, 19 de março de 2023

Língua, gênero, sexo e derivações.

 


 

A língua é uma criação, em constante transformação, de um povo e, portanto, está associada ao processo de criação e superação de suas necessidades. Claro, gramáticos querem sistematizar e evidenciar um regramento e, certamente, também fazem parte do povo. Fazer parte, no entanto, é ser somente uma parte... e um povo tem muitas partes. 

Ser, por sua vez, membro do grupo dos politicamente corretos é, também, e na melhor das hipóteses, a tentativa de controlar a fala do povo em suas transformações, mas, tal como os gramáticos, os politicamente corretos, também, nada mais são que uma parte do tal do povo.

De uma maneira ou de outra, a construção, reconstrução, definição e redefinição de como é mais correto falar ou escrever, é um processo associado à correlação de forças entre os diferentes grupos, sejam eles as diferentes elites ou as diferentes manifestações que se realizam em meio às multidões das ruas de comércio, aquelas que são chamadas pelo grupo dos politicamente corretos de população de baixa renda. 

A língua, portanto, como toda relação humana, é um dos aspectos da luta política que travamos todos os dias. Assim, buscar a etimologia das palavras não esclarece, necessariamente, seu significado corrente no imaginário desse ser genérico que chamamos de povo, isto é, utilizar as mesmas palavras já utilizadas a séculos, para que possam ser compreendidas não se pode, de forma linear e direta, imaginar que continuam possuindo os mesmo significados de quando foram criadas.

Vejamos um dilema espinhoso desse processo: os dilemas em relação às identidades de gênero. Nós, os humanos, não temos gênero. Gênero é, no nosso caso, um problema linguístico[1] e não sexual. A sexualidade é um dos aspectos que também nos caracteriza e cada um de nós possui e constrói a sua própria. Confundir sexo com gênero é uma maneira canhestra de refazer as generalizações para criar outras. Ninguém é puro, isto é, ninguém é 100% macho, fêmea, gay, lésbica, transexual. Cada um de nós expressa e convive com múltiplos desejos e, sem dúvida, parte considerável deles não se tornarão públicos, não importando em qual grupo ou autoidentificação nos sentimos mais ou menos acolhidos. 

Voltemos: tanto os gramáticos quanto os grupamentos dos politicamente corretos expressam, sempre, algo de reacionário. Ambos querem ter o controle da força com que as multidões criam e recriam a língua, apagam e redefinem preconceitos, eliminam e acolhem diferenças, se auto identificam para, a seguir, sentir o peso da carência conceitual que tudo isso implica, ou, em outras palavras, o fato de da constatação de que tudo o que penso sobre o meu existir se mostrar, sempre, um certo tipo de reducionismo. Já o sabemos: o uso de uma linguagem sem gênero não torna seu usuário nem mais nem menos preconceituoso. As formas com que excluímos ou incluímos o diferente, o outro, o desconhecido, o que queremos subordinar, comandar, excluir, destruir, reificar será, sempre, o fruto, ao mesmo tempo bendito e maldito, do próprio existir da sociedade. As elites resistem, mas, mais dia ou menos dia, dirão que é “chic” parte considerável do que hoje despreza, pois, certamente, lhes faltará vocábulos para falar do mundo que, transformado, não consegue mais ser identificado com a gramática que os diferentes povos, nos seus confrontos diários, já superaram.

Não há uma maneira correta de se expressar, fora aquela que, de uma maneira ou de outra, objetiva e consegue transformar em mensagem a subjetividade do que conseguimos sentir/pensar deste ou daquele tema. Claro! Há sempre o outro lado da moeda: não basta estarmos felizes com a maneira com que construímos uma mensagem, se nossos interlocutores simplesmente não conseguem entendê-la. Se este nexo se realiza é porque nos expressamos corretamente e, a partir daí, é que nossa mensagem passará pelo crivo da crítica, sendo que isso, necessariamente, se fará pelos objetivos que, mais ou menos claramente, a mensagem possua. Assim, ao desvendar os reais ou imaginários objetivos dos diferentes sujeitos, faremos a crítica, diremos sobre que pontos concordamos ou discordamos e, muito raramente, isso tudo é um problema gramatical (mesmo que este possa nos levar a compreender mau a intenção dos proponentes): trata-se da luta ideológica sobre o significado dos discursos e isso, ao que parece e felizmente, jamais terá fim antes do fim da própria humanidade.

 

 



[1] Nem mesmo na classificação de Lineu a expressão “gênero” é utilizada para identificar “sexo”.