quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O Povo e as Ruas

Sou um feroz leitor de blogs sujos. Não leio os “limpos”.  Perdi completamente minha paciência e, vez ou outra, também não leio os “sujos” ou os leio na diagonal. O momento histórico está, aparentemente, carregado de monotonias. Estamos, todos os dias, falando o mesmo, acreditando na crítica que fazemos aos “blogs limpos” dizemos que eles repetem milhares de vezes a mesma mentira até que ela se torne verdade e, assim, estamos repetindo milhares de vezes nossas verdades para que se tornem verdades para os outros.
No momento a reclamação geral está na ausência dos maiores interessados, dos mais fragilizados, daqueles que votaram na presidenta e vivem sob jugo do usurpador, que tinham certos direitos e os perderam, que tinham emprego e estão na rua da amargura, que, apesar de empregados, não recebem seus salários, que, apesar de carregaram carroças, acabam morrendo pelas mãos da polícia. Os negros, as mulheres, os gays, as minorias que são maiorias estatísticas, os judeus, árabes, haitianos, as putas, as estupradas, os escravizados, os índios, os “especiais”, aqueles todos que teriam por obrigação pertencer à esquerda e defender nossos (seus) direitos. As ruas, paulatinamente, vão ficando mais vazias e, ao que parece, estamos nos acostumando novamente a nos mostrar indiferentes. A imagem que me vem é a do mascate simpático: sorri para todos, cumprimenta a todos, mas só ele sabe de suas dores. Ou, como diria o Chico Buarque:
Em toda canção
O palhaço é um charlatão
Esparrama tanta gargalhada
Da boca para fora
Dizem que seu coração pintado
Toda tarde de domingo chora 

E assim, de uma maneira ou de outra, os blogs sujos parecem chorar a ausência do povo nas ruas e se perguntam, como já tantas outras vezes na História, o que aconteceu, quem errou, como colocar o Temer, o Maia, o Congresso, o Lula, o Moro, o PT, o DEM e o pato da FIESP na vala mais comum do esquecimento?????
Num desses lamentos mais que sinceros, Eliane Brum nos alertava que já fomos às ruas pela catraca livre, que nos batemos contra o PT e contra a corrupção, que denunciamos o Moro por ser um juiz sem a venda nos olhos e que, antes de recoloca-la, distribui os pesos da balança de acordo com seus preconceitos fascistas. Não me lembro muito bem se ela disse isso tudo, mas foi assim que minha memória registrou. O essencial é que ela se questionava sobre o como e o porque vamos às ruas para denunciar ladrões, mas deixamos de lado o denunciar dos assassinos. Não vamos anistiar corruptos, mas anistiamos torturadores. Levei um susto ao ler tudo isso, lembrei-me do que não deveria nunca ter esquecido, conclui rapidamente que Moro se tornou mais importante que a Comissão da Verdade... compreendi que pertenço a um povo e, certamente, a uma esquerda cujo moralismo é estruturalmente imoral.
Volto aqui ao ponto mais que sensível dos meus embates: o fato de que confundimos, ou diluímos, a ideia de poder político com a presença de militantes de esquerda na máquina de Estado. Confundimos ou diluímos a noção de poder e de política com a noção de Estado e, mais que isso, confundimos o movimento sindical com o movimento operário e as reivindicações sindicais com luta de classes.
 Os pretensamente mais críticos chamam os anos de governo petista de Lulismo. Algo tão simplificador como Stalinismo, Hitlerismo, Getulismo, Comunismo ou, mesmo, no limite, Capitalismo e Imperialismo. É preciso dizer o que queremos dizer quando dizemos o que dizemos ou, certamente, estamos querendo enganar a quem nos lê ou escuta.
É preciso evidenciar que Lula é a expressão mais sofisticada e acabada da razão sindical em nosso país. Que o governo que ele encarnou foi seguido, defendido, ajustado, readequado, negociado, desenvolvido e realizado por milhões, aqui no Brasil e com o devido respeito de governantes de quase todo o mundo. Assim como Hitler não explica o nazismo (fiquemos somente nesse exemplo para evitar repetições inúteis), Lula não explica a maneira pela qual a esquerda brasileira abandona o movimento popular, se torna funcionária pública e vai reler o que aprendeu nas ruas, nos bairros, nos acampamentos, nas aldeias, como negociadora de Estado.
Desde que aceitamos a Anistia ampla, geral e irrestrita, dissemos com todas as letras, a todos os que ouviram essa mensagem, que nos colocávamos como corresponsáveis pela violência, em pé de igualdade com assassinos fardados ou sem fardas.
Olhamos para nós mesmo não como aqueles que resistem, mas como aqueles que provocam e, como crianças travessas, perdoamos nossos pais por nos surrarem, consideramos que fomos nós que fizemos as travessuras.
Na sequência histórica do processo, nos diluímos no PT, porque, de alguma maneira, imaginamos que dentro dele negociaríamos publicamente um projeto de esquerda para o Brasil.... Não conseguimos: nosso limite foi a lógica sindical e a esquerda se resumiu a um grande projeto de inserção de parcela considerável da população, profundamente marginalizada, no interior das relações mais clássicas do mercado. E nós, a esquerda, falamos com algum orgulho (e, agora, com alguma desconfiança) dos números quase impensáveis de pessoas que, rapidamente, passaram a ter conta bancária, a ter acesso à moeda, a ter direito à escola em todos os seus níveis, aos sucessos do SUS e aos surpreendentes resultados de projetos como o “ciência sem fronteiras”. O Brasil cresceu, os bancos cresceram, o agronegócio cresceu, o mercado cresceu e a esquerda, mais uma vez, tal como o mitológico Hércules, limpou as cavalariças de Áugias para devolve-las ao próprio Áugias e, apesar disso, teve de enfrentar uma guerra para que, ao final, seu inimigo morresse de velhice.
Enquanto isso, no vazio deixado pela esquerda (inclusive aquela associada à igreja católica) os templos e seus pastores pentecostais, vão tomando conta das periferias brasileiras. Vamos, por vezes em velocidade jamais pensada, nos aproximando de uma república fundamentalista cristã. A presença de Temer (e sua esposa bela e do lar) e dos diferentes Bolsonaros (e seus pistoleiros) tem demonstrado essa possibilidade de forma inequívoca.
Assim, o povo vai, rapidamente, voltando para casa. Sem nenhuma perspectiva que não seja a continuação do que nos levou ao profundo buraco que estamos metidos, em defesa da razão de Estado e, de fato, sem nenhum movimento cujo fundamento mais básico seja a organização política e a disputa pelo poder por parte daquela lista de identidades que indiquei logo nos primeiros parágrafos deste texto.
As denúncias que se faz contra Lula, todos os dias, de forma mais que massacrante, não o retira do jogo eleitoral de 2018, pelo contrário. Da mesma maneira, as denúncias que fazemos contra Temer e seus deputados, não mobiliza a tal da “massa” em manifestações gigantescas capazes de mostrar a força e a justiça das reivindicações de esquerda. É preciso mais que isso: é preciso que uma nova geração retome o caminho em direção ao empoderamento político daqueles que, imaginamos, devem constituir uma nova maneira do viver humano. Sem isso, o que pensamos, não passará do que, rasteira e fragilmente, continuaremos a chamar de “políticas públicas”.
O povo não está nas ruas... e, como sempre, devemos considerar que isso faz parte de sua sabedoria. O problema é sabermos o que é, no final das contas, que o povo sabe? Será que ele sabe que seus velhos líderes, para mostrarem suas forças, o abandonou? Esse é o maior medo dos que creditam a si próprios a imagem de salvadores... nem a rede globo, nem os blogs sujos, sabemos o que o povo sabe e, menos ainda, que caminhos percorre para constituir o seu saber. 
De uma maneira ou de outra é, ainda, possível inferir que precisamos retomar um exercício perdido no momento mesmo da constituição do PT e da retomada da democracia de Estado, do tal do Estado de Direito, das eleições gerais e da mudança na rota geral das políticas públicas: o exercício do poder popular.
Nada diz, a princípio, que o modelo de Estado que herdamos do século XIX é, de fato, a última experiência possível para a humanidade, e o mesmo podemos dizer sobre a sacrossanta sacralidade da integralidade territorial dos Estados. É preciso repensar o formato geral do exercício do poder e, a princípio, uma das poucas experiências associadas a isso foram os sovietes no percurso que construiu os fundamentos da revolução bolchevique em 1917. Nenhuma outra experiência foi suficientemente radical. As experiências socialistas vindas na sequencia do século XX foram dominadas (mesmo que no contraponto e na necessidade da negação) no modelo que identificamos como URSS, uma espécie de czarismo desenvolvimentista que se tornou por décadas a identidade oficial do comunismo e, certamente, nada pode ser menos comunista que uma identidade oficial.
Relembro aqui a identificação feita por Lefebvre ao afirmar que Stalin era um hegeliano e não um marxista
Por fim, há de se considerar, ainda no contexto do povo longe das ruas, que, dia após dia a esquerda, com algum histórico de esquerda, tem se especializado em difundir e assinar abaixo assinados... é, de fato, o recuo no seu mais evidente limite. Daí para trás, diria Hamlet, é o silêncio....