sábado, 7 de dezembro de 2019

Quando descobrimos que os fixos são fluxos.

 

#geografia

            Galileu dedicou grande parte de seus esforços em combater o senso comum de sua época e ele imaginava que as dificuldades de tal embate possuía um nome: Aristóteles[1]
Praticamente redescoberto por Thomaz de Aquino[2], Aristóteles vai substituir o ponto de partida da teologia católica, deixando para trás o pensamento platônico que a dominava, fundamentalmente, desde Santo Agostinho[3]. A retomada do pensamento Aristotélico trouxe consigo, como parte do legado, as lições que ele havia proposto em seus escritos sobre a Physis e se tornou a base de estudos de um sábio conhecido pelo nome de Sacrobosco. Em meu livro “A Reinvenção do Espaço” conto essa História com mais detalhes. 
Agora, alguns séculos depois, Galileu reconhece que a física aristotélica se coloca na contra mão das proposições de Copérnico e que a maneira mais eficiente de continuar avançando nas pesquisas que fazia e de garantir a aceitação publica dos resultados seria necessário, em primeiro lugar, evitar um confronto direto com a Igreja e, por decorrência, mirar todos os esforços no sentido de desmontar os argumentos de Aristóteles.
A obra mais avantajada de Galileu chamou-se “Diálogos sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico[4] & Copernicano” e, logo no título, já se observa esse tipo de confronto: o livro é escrito na forma de diálogos, sendo isso uma referência às obras de Platão e, portanto, a maneira de expor os argumentos se diferencia estruturalmente do texto aristotélico. 
Um segundo detalhe é que os diálogos se realizam entre três personagens distintos, sendo que um deles é defensor evidente da física de Aristóteles e, com o sentido de minimizar ou reduzir o papel desse personagem, Galileu o chamou de Simplício. 
Deixemos agora esses detalhes de lado e vamos ao que nos interessa aqui: a física aristotélica propõe que a natureza é composta de quatro elementos distintos, a terra (o mais pesado entre eles), a água, o ar e o fogo (o mais leve de todos). Tal diferença justificaria que o mais pesado estivesse no centro do universo e os demais elementos, quanto mais leves são, mais distantes desse centro vão entrar em repouso, isto é, vão chegar ao seu lugar natural, por assim dizer. Por isso mesmo que, ao atirar uma pedra para o alto ela tenderá a cair de volta e ao acender-se uma fogueira as chamas tenderão a se dirigir para cima. Dois pontos a se confrontar se se quiser defender Copérnico: a terra não está em repouso (fazendo movimentos de rotação e translação) e nem os satélites, planetas ou estrelas. A conclusão fundamental que dará sustentação a tudo o que conhecemos hoje como ciência é a seguinte máxima: e, no entanto, tudo se move.
A luneta desenvolvida por Galileu parecia demonstrar, a cada passo, que ele tinha razão. Quando apontou suas lentes para a Lua viu que ela tinha, basicamente, a mesma configuração que a Terra. Tinha montanhas e vales, era possível se observar formações muito semelhantes à de vulcões e, principalmente, se movimentava de forma cíclica para se expor ou não à luz solar. Da mesma maneira, Galileu observou que, com sua luneta, poderia identificar estrela invisíveis a olho nu, bem como identificou o surgimento e o desaparecimento de alguns desses astros. Assim, ele vai propor que nada, absolutamente nada, está parado. Tudo que observamos como estando em repouso se deve ao fato de que tais objetos ou situações estão se movendo na mesma direção e velocidade que nós. E aí voltamos à sua proposição mais famosa: claro que podemos imaginar que as estrelas são fixas, mas, no entanto, elas se movem....
Tal descoberta daria o fundamento de tudo que, a partir de Galileu, se fez para  construir o que entendemos hoje por física ou, de forma genérica, por ciência. Do ponto de vista histórico valeria, ainda, realçar que tais proposições também carregavam e carregam seus problemas. Se acompanhamos o trabalho de Newton, veremos que ele vai se debater com o fato de todos os elementos se moverem e, assim, ficaria impossível saber o quanto eles se movem, por que, no final das contas, tudo isso se torna algo “absolutamente relativo”. 
Em busca de uma solução para seu dilema, Newton advoga a existência do Espaço e do Tempo como verdadeiros a-priori na existência da Natureza. Segundo suas proposições o universo teria sido contruído no interior do corpo de Deus e este, possuindo existência real e inequívoca, teria, no entanto, uma massa tão tênue que pouco ou nada interferiria na gravidade. Foi assim que o sistema de movimentos necessitava de um referência imóvel para poder existir e Deus foi a solução possível.
Einstein, por sua vez, revoluciona tudo isso e vai em busca de outro sistema de referência: a velocidade da luz. Ao considerar que, não importando se nos dirigimos para sua fonte ou dela nos afastamos, a luz sempre nos atingirá a uma velocidade de 300000 quilómetros por segundo, esse movimento se tornará o fixo num sistema onde cada objeto possui sua direção e velocidade. A variável, portanto, é que o fixo é a constante de um movimento. 
Para terminarmos essas pinceladas de um embate que foi sistematizado primeiramente por Aristóteles, dois mil e quinhentos anos depois dele teremos a presença da teoria do caos, um discurso que alguns físicos vai desenvolver a partir da segunda metade do século passado, alimentando o embate que permitiria ou não criar um sistema de referência e, portanto, algo fixo (nesse caso o controle total sobre o ponto de partida de um fenômeno, algo impossível de se obter) que permita observar e prever com precisão um movimento.
 As dificuldades são muitas e, para demonstrar a escala dessa confusão vejamos uma das maneiras com que o embate se expressou no interior do discurso geográfico: 
Numa primeira hipótese de trabalho, dissemos que a geografia poderia ser construída a partir da consideração do espaço como um conjunto de fixos e fluxos (Santos, 1978). Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condi­ções sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se modificam (Santos, 1982, p. 53; Santos, 1988, pp. 75-85).
Fixos e fluxos juntos, interagindo, expressam a realidade geográfica e é desse modo que conjuntamente aparecem como um objeto possível para a geografia. Foi assim em todos os tempos, só que hoje os fixos são cada vez mais artificiais e mais fixados ao solo; os fluxos são cada vez mais diversos, mais amplos, mais numerosos, mais rápidos.” (SANTOS, 2006. Pág 38) 
O ponto mais complexo desta proposição é aquele que nos leva à uma pergunta aparentemente simples: os fixos existem? Se levarmos em consideração as lições deixadas por Galileu, o que nos resta é uma afirmação cujos argumentos iniciais são desnecessários: sim, os fixos existem, mas, no entanto, eles se movem.
E que consequências teria isso para nossos estudos? Bem..., a primeira delas e a mais importante é a maneira pela qual observamos um fenômeno no sentido de compreende-lo. A existência de um fixo nos permite identificar algo que, com o transcorrer do processo de observação, vai continuar sendo sempre o mesmo. Caso consideremos que o fixo, no entanto, se move, há de se considerar que todos os elementos que compõem o fenomênico são, igualmente, fluxos. Possuem diferentes velocidades e direções, mas algo fixo, a principio, simplesmente não existe. 
O texto de Milton, em si mesmo, já expressa claramente a dificuldade dessa relação conceitual. Digamos que, como se observa no início do segundo parágrafo, se fixos e fluxos interagem, então o fixo é, igualmente, fluxo, pois toda interação pressupõe que os elementos em jogo se transformam mutuamente.  
 Na continuação do mesmo parágrafo, o autor nos informa que “foi assim em todos os tempos, só que hoje os fixos são cada vez mais artificiais e mais fixados ao solo”. Quais teriam sido os fixos do passado? As montanhas? As rochas? Tudo aquilo que nos aparecia como referência perene na realização cotidiana (ou não) da vida? Bem... é aí que, novamente, quinhentos anos depois, Galileu vem nos informar que mesmo as montanhas, as rochas ou seja lá o que for que se pareça fixo, no entanto, se move.
Assim, o que podemos afirmar é que a relação entre fixos e fluxos é uma ilusão do ponto de vista do fenomênico e, portanto, uma proposição que metodologicamente nos confunde e epistemologicamente é demasiadamente frágil para servir de base a qualquer campo do conhecimento. O desvendamento da ciência nos obriga a considerar que o fenomênico é uma relação entre fluxos, os quais, possuindo diferentes direções e velocidades são, de fato, os processos que determinam a maneira pela qual cada objeto observado se comporta. É exatamente por isso que o fundamento da Geografia é a noção de lugar e localização (processualidade) e não Espaço... mas isso, sem dúvida, é assunto para outra conversa. 

Uma bibliografia básica. 

AGOSTINHO, Santo.  A Cidade de Deus. 2 vols. Petrópolis: Vozes,  1° vol. 1990a e 2° vol. 1990b.
ARISTÓTELES. Fisica - Libros I - II. Buenos Aires: Biblos, 1993.
ARISTÓTELES. Fisica – Madrid, Editorial Gredos, 1995
BALIBAR, Françoise. Einstein: uma Leitura de Galileu e Newton. Lisboa: Ed. 70,  1988.
BERGSON, H. O que Aristóteles Pensou Sobre o Lugar. Campinas, Editora Unicamp, 2012
BRANCO, J.M.F. Dialética, Ciência e Natureza. Lisboa: Ed. Caminho, 1989.
BURTT, Edwin A. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna. Brasília: Ed. UNB,  1991. 
COHEN, I. B. O Nascimento de Uma Nova Física. Lisboa: Gradiva, 1988.
GALILEI, G. Diálogos sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico & Copernicano. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001
NEWTON, I.  O Peso e o Equilíbrio dos Fluidos. Os Pensadores, vol. XIX. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974b.
NEWTON, I. Princípios Matemáticos da Filosofia Natural I. São Paulo: EDUSP, 2002
PLATÃO. A República. São Paulo: Atena Ed.,s/d.
SACROBOSCO, J. Tratado da Esfera. São Paulo: Unesp, 1991.
SANTOS, D. A Reinvenção do Espaço. São Paulo, Ed. Unesp, 2002
SANTOS, D. Um Objeto para a Geografia. Sobre as Armadilhas que Construímos e o que Devemos Fazer com Elas. Terra Livre no. 30, AGB Nacional, São Paulo, 2008
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção 4a.. ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.



[1] Todas as obras aqui citadas e mais algumas outras estão listadas na bibliografia.
[2] Tal como se observa na Suma Teológica no item que trata da Criação e das Criaturas. 
[3] A principal obra de Agostinho é a “Cidade de Deus”. 
[4] Vale lembrar que o sistema ptolomaico se baseia nos princípios da física aristotélica.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Nacionalismos: doença infantil do esquerdismo e base identitária do fascismo

Em busca de uma frase de efeito vale inspirar-se em Lenin e seu "Esquerdismo: doença infantil do comunismo” propondo os seguintes termos: Nacionalismos: doença infantil do esquerdismo e base identitária do fascismo. 
Pertencer ao mundo, compartilhar a vida com a humanidade e com todos os demais elementos que compõem o que chamamos de natureza, não é uma escolha, é a condição do existir contemporâneo. Ter tal consciência e considerar-se como co-partícipe do processo de construção da humanidade do humano - entendendo, sempre, que a transformação do humano é, igualmente, transformação da natureza - é, no entanto, um longo caminho a ser percorrido. No limite, ainda podemos encontrar aqueles que se sentem pertencentes a uma cidade, a uma nação ou a um país e, nos dias de hoje, a algo como a União Europeia (raros, mas existem). 
É preciso, portanto, que o ensino da geografia radicalize a noção de humanidade. Precisamos ensinar que a humanidade não é somente a somatória de pessoas, mas as pessoas são, igualmente, a realização individualizada e necessária do existir da humanidade. Da mesma maneira, a proposição exige uma releitura do que entendemos nossa relação com a natureza. É preciso compreendermos que somos uma das maneiras pelas quais a natureza existe enquanto tal e, portanto, longe de podermos destruir a natureza, o que podemos de fato é nos organizarmos de tal maneira que nossa presença na natureza se torne impossível. 
Tal como em relação aos pequenos grupos tribais, para os quais a ideia de nação foi a criação necessária à expansão e consolidação dos grandes impérios e, mais recentemente, realização particular da universalidade que conhecemos como Modo de Produção Capitalista (e devem ser vistas como são, isto é, a particularidade necessária e estruturante da realização de uma singularidade que chamamos de Formação econômica e social), exigindo algo muito mais complexo que a nação e que, portanto, a ela não se resume (considerando que tal mediação tem o Estado como seu formato básico de realização). Voltamos, portanto, ao ponto de inflexão com o qual a geografia se deparou a partir de Kant: pertencer ao mundo, mas se identificar com a Nação. Agora o mesmo impasse muda de escala: é preciso se identificar com o mundo para pertencer a uma nação.


segunda-feira, 3 de junho de 2019

Território: em busca de um conceito

Em relação às três categorias que compõem a construção do discurso geográfico (paisagem, território e região), é importante considerar que possuem conceitos diferentes e interdeterminantes.  A primeira delas está associada à dimensão da aparência e, portanto, ao processo de percepção das formas do mundo pelo sujeito. Tal percepção é, por sua vez, a imediatidade, isto é, a condição que cada um de nós possui, tendo como referência os saberes já construídos e passíveis de se acessar imediatamente, de reconhecer as formas do mundo utilizando de nossos sentidos. A possibilidade do sujeito de reconhecer a distribuição das formas percebidas (tamanho, distância, interrelação) é o que permite que seu pensar sobre o mundo ultrapasse o limite da imediatidade (aparência) e chegue à condição do reconhecimento mediatizado, pensado. Este concreto pensado é o Território. 
Para evitar maiores confusões vale considerar que o território do poder é, de fato, uma região, isto é, o território tematicamente recortado. O Brasil, por exemplo, possui um território, mas o discurso que faço sobre ele e que tem a existência do Estado Nacional enquanto territorialidade (País) como pressuposto é, de fato, o reconhecimento de que Brasil é uma região cuja identidade está na existência de um Estado Nacional específico. Por fim fica a mesma indicação já feita em relação às categorias anteriores: território não é uma coisa, mas o reconhecimento de que o ecúmeno humano possui formas e que é dessa percepção  que se ordena a dimensão topológica que possui (co-habitação), é a indicação da existência de uma ordem que define os diferentes processos que compõem a realidade empírica. 

domingo, 2 de junho de 2019

Há vida inteligente no comando do palácio do planalto???

 Para os tempos de hoje a resposta a essa pergunta pode ser crucial para a análise da política de Estado no Brasil, na identificação de seus sujeitos, no reconhecimento das cartas que estão sobre a mesa e, nesse contexto, daquelas que se encontram escondidas e cuja ordem desconhecemos. 
Confesso, com certa alegria, que essa tentativa de reflexão me foi provocada por um artigo que li na internet, estava disponibilizado no twiter dos Jornalistas Livres e foi escrito por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia e pode ser encontrado emhttps://jornalistaslivres.org/o-bolsonarismo-radicalizou-o-lugar-da-fala/
Vejamos alguns fundamentos de caráter metodológico para que possamos reduzir a inelutável ambiguidade da resposta. No passo a passo da reflexão, a primeira pergunta a se fazer é: o que entendemos por vida inteligente em um lugar determinado?
Considerando as pesquisas recentes que identificam um leque cada vez mais amplo de animais superiores capazes de construir cultura e, portanto, de mudarem de comportamento através da aprendizagem, vida inteligente pode ser encontrada em muito mais lugares que aqueles habitados por seres humanos. 
Uma resposta como essa nos coloca frente ao ridículo da pergunta inicial. Se inteligência é a expressão que nos permite identificar comportamentos associados à construção de culturas, então no Palácio do Planalto tem inteligência por trás do emaranhado de discursos e comportamentos considerados nonsenseou estúpidos ou… bem, não importam os adjetivos. Fiquemos no limite de identificar como comportamentos pouco inteligentes.
Vejamos: se a expressão “inteligente” está associada à capacidade de “interlegir” e, portanto, de “ler por dentro”, identificar relações que não são óbvias, reconhecer significados nas entrelinhas e assim por diante, a relação direta entre inteligência e construção de cultura fica um tanto quanto abalada. 
Acontece que “ler por dentro” implica, sempre, ler algo determinado, isto é, responder a um desafio, cujo controle não está nas mãos dos sujeitos desafiados e, portanto, inteligentes em determinadas situações podem se mostrar medíocres sob outras. Assim, podemos afirmar que não existe inteligência no geral, mas a expressão deve ser utilizada para identificar aqueles que respondem melhor a este ou a aquele desafio. Fico aqui imaginando a minha relação com os pincéis, com instrumentos agrícolas e com uma interminável lista de assuntos com os quais não tenho qualquer familiaridade. Não consigo tocar um instrumento musical sequer, nem mesmo uma flauta doce e, portanto, em relação à música me coloco na posição de um ouvinte mais ou menos medíocre (uso a mim mesmo como exemplo para evitar polêmicas desnecessárias)
 O segundo passo desse “procedimento metodológico” se aproxima mais do artigo de Oliveira, pois, imagino, se faz necessário questionar se, independentemente da inteligência dos sujeitos, o conhecimento é algo possível. Lembro sempre nesses momentos de um embate entre Henry Lefebvre e Cassirer. Enquanto o neo-kantiano escreve milhares de páginas sobre “O Problema do Conhecimento”, o marxista afirma que o conhecimento não é um problema, é um fato. Em um resumo forçado e feito de memória, diria que o conhecimento só se torna um problema quando se torna objeto de reflexão metafísica. O homem comum (Goldmann?) sabe que sabe, porque o resultado de seus atos estão conforme suas expectativas e reconhece que não sabe quando seus fazeres (incluindo aí os seus pensares) não dão conta de seus objetivos. Em linhas gerais, todo ceticismo em relação ao saber é um reconhecimento de que o saber existe.
É aí que, no meu entender, Oliveira mostra a genialidade de sua reflexão: ao apontar que, com interesses aparentemente tão díspares, certos militantes do movimento negro, outros do movimento indígena, feminista e por aí vai, possuem fundamentos epistemológicos que se associam aos bolsomínios e aos terraplanistas e pos aí vai….
Fica, portanto, a dúvida que intitula essa reflexão: há vida inteligente na cúpula do palácio do planalto? Se inteligência for algo genérico e metafísico, certamente que sim, se não é esse o caso e, portanto, ela estiver associada aos desafios assumidos pelos sujeitos… aí permanece a dúvida. Assumindo como pressuposto que não existe inteligência nem conhecimento genérico ou, como o poeta diria do amor, como verbo intransitivo, então vale perguntar se esse grupo que assumiu a política de Estado no Brasil tem inteligência e é capaz de produzir saberes associados diretamente a essa tarefa e, pelo que se tem visto, a resposta é pura e simplesmente não. Essa trupe nascida e crescida e educada para gestar relações de milicianos e enquanto milicianos, que sobreviveu na política no contexto de permanecer no baixo clero, tem governado (e sobre isso já refletiu Eliane Brum), mas isso não significa que saiba fazê-lo. Ao que parece a inteligência que possui não responde aos desafios colocados e, nessa condição, provavelmente não sobreviverá. 
Do ponto de vista dos inteligentes de Brasília (essas figuras existem), no roldão do movimento geral que deu na composição do atual governo, mantê-lo deve estar associado à inexistência de  alternativas à direita (uma eleição nesse momento, provavelmente colocaria o PT no poder). Assim, respondendo à pergunta inicial: as inteligências na cúpula dos três poderes estão dispersas, procurando algum ponto sobre o qual criar alianças tácitas e controlar a guerra entre grupos mafiosos que se articulou a partir do impedimento de Dilma Roussef. Essa guerra entregou o poder a um desses grupos, mas está longe do seu fim. Pactos de cessar fogo duram pouco e tendem a se tornar cada vez mais frágeis. Nesse momento se articula uma luta que não tem nem mesmo a direita ou a extrema direita como alvo. O que se objetiva, desesperadamente, é que um grupo de pessoas que possuam alguma inteligência para gerir o palácio do planalto e as cúpulas que se distribuem pela esplanada dos ministérios, venha em socorro do país. 
Que pena… empobrecemos até os nossos desejos, o que mostra que estamos sendo pouco inteligentes. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Geografia: seus assuntos e seus caminhos metodológicos

Os temas não definem se uma abordagem é ou não geográfica. Podemos falar de relevos, rochas, climas, mapas, populações, cidades, campos e tantos outros temas mais, tendo como referência os saberes fundados na geologia, na climatologia, na cartografia, na demografia, na sociologia, na economia, física, química, e a lista não terá um final que satisfaça os que se preocupam com o assunto. O que define uma ciência é a maneira como o sujeito constrói sua dúvida e, fazendo uso de uma tradição, busca responder o que ainda não foi respondido e, na melhor da hipóteses, perguntar o que ainda não havia sido perguntado. Para sabermos se uma abordagem é ou não geográfica há, sem dúvida, um ponto de partida cuja fundamento acharemos em suas próprias raizes: A pergunta do sujeito deve estar, antes de mais nada, associada à relação possível entre a distribuição e localização dos elementos que compõem um processo e a maneira pela qual tal condição define o próprio processo. Tal resposta, no entanto é insuficiente, pois, de uma maneira ou de outra, o reconhecimento da ordem possível de qualquer fenômeno é uma busca primária em qualquer campo do conhecimento. É preciso avançar e identificar que na nossa tradição, independentemente da infinidade dos temas possíveis, todos se associam à escala do ecúmeno humano. Para a tradição geográfica a disposição das estrelas só fazem sentido se nos ajudam a localizar uma direção ou ponto específico em nosso planeta e associado diretamente ao nosso viver. Da mesma maneira, a estrutura química de uma rocha e, portanto, o ordenamento molecular que a define, só interessa à geografia quando tal informação nos ajuda a entender o sentido de “lugar” que ela cria e, portanto, em que medida estar onde está define o existir das sociedades que, direta ou indiretamente, a ela estão associadas. É por isso mesmo que a cartografia é a linguagem mais utilizada pela geografia, pois, no final das contas, é a que permite representar “topológicamente a topologicidade do fenomênico na escala do ecúmeno humano” (juro que não copiei essa proposição de um manual de bruxaria). Assim, para além dos temas, o que define uma ciência é a dúvida sistematizada por um sujeito e é, justamente, na maneira pela qual ele a constrói que se define qual é o seu objeto. Não é o objeto que define uma ciência, mas a maneira pela qual o sujeito o constrói e, portanto, não basta ser geógrafo (e nem ao menos é uma condição prévia) para se fazer geografia, é preciso saber construir suas perguntas e, por consequência, achar os caminhos que permitam construir respostas.    

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Monteiro Lobato, um biógrafo.

Monteiro Lobato foi um biógrafo. Não um biógrafo comum, desses que se dedicam a pesquisar a vida das pessoas, identificar detalhes, entrevistar parentes e publicar algo em torno de 500 ou 600 páginas, começando pela identificação de pais e avós e terminando, quando é o caso, com o enterro daquele que ali já virou um personagem. Claro! Há aqueles que são auto biógrafos. Alguns super interessantes como Saramago e seus Cadernos de Lanzarote, outros menos interessantes como Caetano Veloso e suas Noites Tropicais. De toda maneira, há biógrafos e biógrafos, mas poucos ou quase nenhum podem ser comparados a Monteiro Lobato.
Em primeiro lugar porque ele não escreveu sobre uma pessoa, mas sobre um lugar e, como não há como falar dos lugares sem que se evidencie sua identidade, no caso de Lobato ele teve de falar das pessoas que faziam daquele o lugar sobre o qual ele queria falar.
O segundo ponto é que ele não foi atrás de nenhum documento, não entrevistou ninguém, não se imiscuiu na vida de ninguém. Os personagens do lugar que ele biografou ele mesmo os inventou e, por isso mesmo, eles eram do jeito que lhe pareceu melhor. 
O terceiro ponto é que ele não biografou nem o começo nem o final daquele lugar. Fico imaginando que não teve tempo, mas isso é mesmo só fruto de minha imaginação. Talvez uma biografia como essa ficasse muito sem graça (como poderia comentar uma de seus personagens) ou nem mesmo fosse do interesse dos seus leitores... bom... não importa: o fim daquele lugar não teve registro por parte do seu biógrafo principal e assim, algumas gerações de leitores que acompanharam a biografia ficaram com ela em suas memórias, foram por ela marcados indelevelmente (como eu, por exemplo) e, vez ou outra, respiramos fundo e fazemos o lugar voltar à vida. 
Mas, o fato é que nos dias de hoje Lobato “passou da moda”. Os livros para crianças foram sendo reduzidos a um amplo conjunto de belas imagens e o esforço da leitura foi sendo colocado como um empecilho para os novos leitores. Creio que isso é uma tolice sem fim, que crianças leem longos parágrafos quando neles estão escritos segredos e aventuras que, de alguma maneira, lhes permita construir imagens em suas cabeças, bem como se debruçam sobre imagens relativamente incompreensíveis quando buscam resposta a alguma dúvida – o fascínio por mapas é um exemplo disso. Bem, não importa... de que valeria uma discussão acirrada com pedagogos e editores ciosos de suas verdades para os comentários que estou fazendo?
O que sei é que li Reinações de Narizinho ao menos por cinco vezes e sei de gente que ultrapassou essa cifra. Naquela idade não me interessava saber o final, mas acompanhar a história, me deliciar em ser um observador, em saber sei lá o que de sei lá o que, desde que fizesse parte daquele imaginário, daqueles personagens, daquele mundo que, para nossa conversa, chamarei apenas de Sitio.
Hoje, passado dos 65, as imagens já estão um tanto quanto soltas. O que sei é que foi com Lobato que descobri que havia uma história do mundo e um mundo das fadas e da pura fantasia, um mundo das máquinas simples e um mundo do petróleo e da geologia, havia também um mundo da mitologia grega e o mundo do Dom Quixote, que a minha língua possuía uma gramática, mas que gramática não era a garantia de um bom texto, de que meus números tinhas uma aritmética e que isso tinha uma ordem gramatical, soube de coisas da astronomia, da geografia do mundo e do mundo mágico que rondava a cultura popular daqueles tempos. Aprendi que uma família podia ser a junção de uma boneca, um rinoceronte, um menino e sua prima e uma avó e sua cozinheira, contando com ajuda sistemática de uma espiga de milho falante metida a cientista. Aprendi a achar os subversivos mais interessantes que os conformados ou os defensores do status quo. Diferente dos adultos que conhecia, logo nas primeiras páginas do Reinações aplaudi os aplausos de Narizinho quando soube que os personagens dos contos de fada queriam fugir de seus livros embolorados em busca de novas aventuras. A vida sem aventura é a vida sem magia e isso não tem graça. O politicamente correto é, de fato, a postura mais incorreta que existe. 
Bom... nos dias de hoje se nega até mesmo a literatura de ontem e, portanto, os preconceitos típicos das antigas fazendas escravistas do vale do Paraíba se tornaram um impedimento moral para que as crianças fossem estimuladas a ler o Biógrafo do Sítio. Não importa (ou importa?), mas nesses dias em que a esquerda se mostra moralista e assexuada fazendo críticas à direita que chama de conservadora (e é de fato), biógrafos desse tipo serão colocados na fogueira dos livros indecentes. Pela direita porque o autor era comunista, pela esquerda porque ele era racista e, se tudo acontecer como deve ser em uma boa História, Lobato voltará às prateleiras como um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX. A biografia que escreveu é atemporal porque era daquele tempo. Subversiva, revolucionária porque, carregada de vida, era também reacionária, conservadora como os revolucionários daquela época. 
Quem seria capaz de escrever um livro infantil onde os seres humanos se tornaram alimento para os pássaros e andavam pelados pelas ruas, onde Hitler foi encontrado escondido como uma barata num vão de um rodapé e as minhocas se tornaram a principal comida de uma comunidade em torno de um balde? Quem atormentaria a cabeça de um pequeno leitor se perguntando o como Hércules tirou a pele do Leão de Nemeia se ela era indestrutível? Quem colocaria para pequenos leitores dúvidas linguísticas associadas ao significado de “vaca” em língua portuguesa ou, ainda, chamaria de herói o bárbaro que, no momento de beijar os pés do Rei, levantou-o e o jogou para trás? Seria viável para seus detratores colocar um menino e um saci discutindo o significado de liberdade? 
Bom... fica aqui minha homenagem pública ao meu mestre, sobre cujos textos mergulhei minha infância e que agora ainda povoa meu imaginário quando escrevo meus livros didáticos ou entro em uma sala de aulas. Assim como a minha, e creio que inadvertidamente, Lobato, ao escrever a biografia do sítio também escreveu a História de muitos de nós, antes mesmo que ela ocorresse.