sábado, 7 de dezembro de 2019

Quando descobrimos que os fixos são fluxos.

 

#geografia

            Galileu dedicou grande parte de seus esforços em combater o senso comum de sua época e ele imaginava que as dificuldades de tal embate possuía um nome: Aristóteles[1]
Praticamente redescoberto por Thomaz de Aquino[2], Aristóteles vai substituir o ponto de partida da teologia católica, deixando para trás o pensamento platônico que a dominava, fundamentalmente, desde Santo Agostinho[3]. A retomada do pensamento Aristotélico trouxe consigo, como parte do legado, as lições que ele havia proposto em seus escritos sobre a Physis e se tornou a base de estudos de um sábio conhecido pelo nome de Sacrobosco. Em meu livro “A Reinvenção do Espaço” conto essa História com mais detalhes. 
Agora, alguns séculos depois, Galileu reconhece que a física aristotélica se coloca na contra mão das proposições de Copérnico e que a maneira mais eficiente de continuar avançando nas pesquisas que fazia e de garantir a aceitação publica dos resultados seria necessário, em primeiro lugar, evitar um confronto direto com a Igreja e, por decorrência, mirar todos os esforços no sentido de desmontar os argumentos de Aristóteles.
A obra mais avantajada de Galileu chamou-se “Diálogos sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico[4] & Copernicano” e, logo no título, já se observa esse tipo de confronto: o livro é escrito na forma de diálogos, sendo isso uma referência às obras de Platão e, portanto, a maneira de expor os argumentos se diferencia estruturalmente do texto aristotélico. 
Um segundo detalhe é que os diálogos se realizam entre três personagens distintos, sendo que um deles é defensor evidente da física de Aristóteles e, com o sentido de minimizar ou reduzir o papel desse personagem, Galileu o chamou de Simplício. 
Deixemos agora esses detalhes de lado e vamos ao que nos interessa aqui: a física aristotélica propõe que a natureza é composta de quatro elementos distintos, a terra (o mais pesado entre eles), a água, o ar e o fogo (o mais leve de todos). Tal diferença justificaria que o mais pesado estivesse no centro do universo e os demais elementos, quanto mais leves são, mais distantes desse centro vão entrar em repouso, isto é, vão chegar ao seu lugar natural, por assim dizer. Por isso mesmo que, ao atirar uma pedra para o alto ela tenderá a cair de volta e ao acender-se uma fogueira as chamas tenderão a se dirigir para cima. Dois pontos a se confrontar se se quiser defender Copérnico: a terra não está em repouso (fazendo movimentos de rotação e translação) e nem os satélites, planetas ou estrelas. A conclusão fundamental que dará sustentação a tudo o que conhecemos hoje como ciência é a seguinte máxima: e, no entanto, tudo se move.
A luneta desenvolvida por Galileu parecia demonstrar, a cada passo, que ele tinha razão. Quando apontou suas lentes para a Lua viu que ela tinha, basicamente, a mesma configuração que a Terra. Tinha montanhas e vales, era possível se observar formações muito semelhantes à de vulcões e, principalmente, se movimentava de forma cíclica para se expor ou não à luz solar. Da mesma maneira, Galileu observou que, com sua luneta, poderia identificar estrela invisíveis a olho nu, bem como identificou o surgimento e o desaparecimento de alguns desses astros. Assim, ele vai propor que nada, absolutamente nada, está parado. Tudo que observamos como estando em repouso se deve ao fato de que tais objetos ou situações estão se movendo na mesma direção e velocidade que nós. E aí voltamos à sua proposição mais famosa: claro que podemos imaginar que as estrelas são fixas, mas, no entanto, elas se movem....
Tal descoberta daria o fundamento de tudo que, a partir de Galileu, se fez para  construir o que entendemos hoje por física ou, de forma genérica, por ciência. Do ponto de vista histórico valeria, ainda, realçar que tais proposições também carregavam e carregam seus problemas. Se acompanhamos o trabalho de Newton, veremos que ele vai se debater com o fato de todos os elementos se moverem e, assim, ficaria impossível saber o quanto eles se movem, por que, no final das contas, tudo isso se torna algo “absolutamente relativo”. 
Em busca de uma solução para seu dilema, Newton advoga a existência do Espaço e do Tempo como verdadeiros a-priori na existência da Natureza. Segundo suas proposições o universo teria sido contruído no interior do corpo de Deus e este, possuindo existência real e inequívoca, teria, no entanto, uma massa tão tênue que pouco ou nada interferiria na gravidade. Foi assim que o sistema de movimentos necessitava de um referência imóvel para poder existir e Deus foi a solução possível.
Einstein, por sua vez, revoluciona tudo isso e vai em busca de outro sistema de referência: a velocidade da luz. Ao considerar que, não importando se nos dirigimos para sua fonte ou dela nos afastamos, a luz sempre nos atingirá a uma velocidade de 300000 quilómetros por segundo, esse movimento se tornará o fixo num sistema onde cada objeto possui sua direção e velocidade. A variável, portanto, é que o fixo é a constante de um movimento. 
Para terminarmos essas pinceladas de um embate que foi sistematizado primeiramente por Aristóteles, dois mil e quinhentos anos depois dele teremos a presença da teoria do caos, um discurso que alguns físicos vai desenvolver a partir da segunda metade do século passado, alimentando o embate que permitiria ou não criar um sistema de referência e, portanto, algo fixo (nesse caso o controle total sobre o ponto de partida de um fenômeno, algo impossível de se obter) que permita observar e prever com precisão um movimento.
 As dificuldades são muitas e, para demonstrar a escala dessa confusão vejamos uma das maneiras com que o embate se expressou no interior do discurso geográfico: 
Numa primeira hipótese de trabalho, dissemos que a geografia poderia ser construída a partir da consideração do espaço como um conjunto de fixos e fluxos (Santos, 1978). Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condi­ções sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se modificam (Santos, 1982, p. 53; Santos, 1988, pp. 75-85).
Fixos e fluxos juntos, interagindo, expressam a realidade geográfica e é desse modo que conjuntamente aparecem como um objeto possível para a geografia. Foi assim em todos os tempos, só que hoje os fixos são cada vez mais artificiais e mais fixados ao solo; os fluxos são cada vez mais diversos, mais amplos, mais numerosos, mais rápidos.” (SANTOS, 2006. Pág 38) 
O ponto mais complexo desta proposição é aquele que nos leva à uma pergunta aparentemente simples: os fixos existem? Se levarmos em consideração as lições deixadas por Galileu, o que nos resta é uma afirmação cujos argumentos iniciais são desnecessários: sim, os fixos existem, mas, no entanto, eles se movem.
E que consequências teria isso para nossos estudos? Bem..., a primeira delas e a mais importante é a maneira pela qual observamos um fenômeno no sentido de compreende-lo. A existência de um fixo nos permite identificar algo que, com o transcorrer do processo de observação, vai continuar sendo sempre o mesmo. Caso consideremos que o fixo, no entanto, se move, há de se considerar que todos os elementos que compõem o fenomênico são, igualmente, fluxos. Possuem diferentes velocidades e direções, mas algo fixo, a principio, simplesmente não existe. 
O texto de Milton, em si mesmo, já expressa claramente a dificuldade dessa relação conceitual. Digamos que, como se observa no início do segundo parágrafo, se fixos e fluxos interagem, então o fixo é, igualmente, fluxo, pois toda interação pressupõe que os elementos em jogo se transformam mutuamente.  
 Na continuação do mesmo parágrafo, o autor nos informa que “foi assim em todos os tempos, só que hoje os fixos são cada vez mais artificiais e mais fixados ao solo”. Quais teriam sido os fixos do passado? As montanhas? As rochas? Tudo aquilo que nos aparecia como referência perene na realização cotidiana (ou não) da vida? Bem... é aí que, novamente, quinhentos anos depois, Galileu vem nos informar que mesmo as montanhas, as rochas ou seja lá o que for que se pareça fixo, no entanto, se move.
Assim, o que podemos afirmar é que a relação entre fixos e fluxos é uma ilusão do ponto de vista do fenomênico e, portanto, uma proposição que metodologicamente nos confunde e epistemologicamente é demasiadamente frágil para servir de base a qualquer campo do conhecimento. O desvendamento da ciência nos obriga a considerar que o fenomênico é uma relação entre fluxos, os quais, possuindo diferentes direções e velocidades são, de fato, os processos que determinam a maneira pela qual cada objeto observado se comporta. É exatamente por isso que o fundamento da Geografia é a noção de lugar e localização (processualidade) e não Espaço... mas isso, sem dúvida, é assunto para outra conversa. 

Uma bibliografia básica. 

AGOSTINHO, Santo.  A Cidade de Deus. 2 vols. Petrópolis: Vozes,  1° vol. 1990a e 2° vol. 1990b.
ARISTÓTELES. Fisica - Libros I - II. Buenos Aires: Biblos, 1993.
ARISTÓTELES. Fisica – Madrid, Editorial Gredos, 1995
BALIBAR, Françoise. Einstein: uma Leitura de Galileu e Newton. Lisboa: Ed. 70,  1988.
BERGSON, H. O que Aristóteles Pensou Sobre o Lugar. Campinas, Editora Unicamp, 2012
BRANCO, J.M.F. Dialética, Ciência e Natureza. Lisboa: Ed. Caminho, 1989.
BURTT, Edwin A. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna. Brasília: Ed. UNB,  1991. 
COHEN, I. B. O Nascimento de Uma Nova Física. Lisboa: Gradiva, 1988.
GALILEI, G. Diálogos sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico & Copernicano. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001
NEWTON, I.  O Peso e o Equilíbrio dos Fluidos. Os Pensadores, vol. XIX. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974b.
NEWTON, I. Princípios Matemáticos da Filosofia Natural I. São Paulo: EDUSP, 2002
PLATÃO. A República. São Paulo: Atena Ed.,s/d.
SACROBOSCO, J. Tratado da Esfera. São Paulo: Unesp, 1991.
SANTOS, D. A Reinvenção do Espaço. São Paulo, Ed. Unesp, 2002
SANTOS, D. Um Objeto para a Geografia. Sobre as Armadilhas que Construímos e o que Devemos Fazer com Elas. Terra Livre no. 30, AGB Nacional, São Paulo, 2008
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção 4a.. ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.



[1] Todas as obras aqui citadas e mais algumas outras estão listadas na bibliografia.
[2] Tal como se observa na Suma Teológica no item que trata da Criação e das Criaturas. 
[3] A principal obra de Agostinho é a “Cidade de Deus”. 
[4] Vale lembrar que o sistema ptolomaico se baseia nos princípios da física aristotélica.