domingo, 19 de março de 2023

Língua, gênero, sexo e derivações.

 


 

A língua é uma criação, em constante transformação, de um povo e, portanto, está associada ao processo de criação e superação de suas necessidades. Claro, gramáticos querem sistematizar e evidenciar um regramento e, certamente, também fazem parte do povo. Fazer parte, no entanto, é ser somente uma parte... e um povo tem muitas partes. 

Ser, por sua vez, membro do grupo dos politicamente corretos é, também, e na melhor das hipóteses, a tentativa de controlar a fala do povo em suas transformações, mas, tal como os gramáticos, os politicamente corretos, também, nada mais são que uma parte do tal do povo.

De uma maneira ou de outra, a construção, reconstrução, definição e redefinição de como é mais correto falar ou escrever, é um processo associado à correlação de forças entre os diferentes grupos, sejam eles as diferentes elites ou as diferentes manifestações que se realizam em meio às multidões das ruas de comércio, aquelas que são chamadas pelo grupo dos politicamente corretos de população de baixa renda. 

A língua, portanto, como toda relação humana, é um dos aspectos da luta política que travamos todos os dias. Assim, buscar a etimologia das palavras não esclarece, necessariamente, seu significado corrente no imaginário desse ser genérico que chamamos de povo, isto é, utilizar as mesmas palavras já utilizadas a séculos, para que possam ser compreendidas não se pode, de forma linear e direta, imaginar que continuam possuindo os mesmo significados de quando foram criadas.

Vejamos um dilema espinhoso desse processo: os dilemas em relação às identidades de gênero. Nós, os humanos, não temos gênero. Gênero é, no nosso caso, um problema linguístico[1] e não sexual. A sexualidade é um dos aspectos que também nos caracteriza e cada um de nós possui e constrói a sua própria. Confundir sexo com gênero é uma maneira canhestra de refazer as generalizações para criar outras. Ninguém é puro, isto é, ninguém é 100% macho, fêmea, gay, lésbica, transexual. Cada um de nós expressa e convive com múltiplos desejos e, sem dúvida, parte considerável deles não se tornarão públicos, não importando em qual grupo ou autoidentificação nos sentimos mais ou menos acolhidos. 

Voltemos: tanto os gramáticos quanto os grupamentos dos politicamente corretos expressam, sempre, algo de reacionário. Ambos querem ter o controle da força com que as multidões criam e recriam a língua, apagam e redefinem preconceitos, eliminam e acolhem diferenças, se auto identificam para, a seguir, sentir o peso da carência conceitual que tudo isso implica, ou, em outras palavras, o fato de da constatação de que tudo o que penso sobre o meu existir se mostrar, sempre, um certo tipo de reducionismo. Já o sabemos: o uso de uma linguagem sem gênero não torna seu usuário nem mais nem menos preconceituoso. As formas com que excluímos ou incluímos o diferente, o outro, o desconhecido, o que queremos subordinar, comandar, excluir, destruir, reificar será, sempre, o fruto, ao mesmo tempo bendito e maldito, do próprio existir da sociedade. As elites resistem, mas, mais dia ou menos dia, dirão que é “chic” parte considerável do que hoje despreza, pois, certamente, lhes faltará vocábulos para falar do mundo que, transformado, não consegue mais ser identificado com a gramática que os diferentes povos, nos seus confrontos diários, já superaram.

Não há uma maneira correta de se expressar, fora aquela que, de uma maneira ou de outra, objetiva e consegue transformar em mensagem a subjetividade do que conseguimos sentir/pensar deste ou daquele tema. Claro! Há sempre o outro lado da moeda: não basta estarmos felizes com a maneira com que construímos uma mensagem, se nossos interlocutores simplesmente não conseguem entendê-la. Se este nexo se realiza é porque nos expressamos corretamente e, a partir daí, é que nossa mensagem passará pelo crivo da crítica, sendo que isso, necessariamente, se fará pelos objetivos que, mais ou menos claramente, a mensagem possua. Assim, ao desvendar os reais ou imaginários objetivos dos diferentes sujeitos, faremos a crítica, diremos sobre que pontos concordamos ou discordamos e, muito raramente, isso tudo é um problema gramatical (mesmo que este possa nos levar a compreender mau a intenção dos proponentes): trata-se da luta ideológica sobre o significado dos discursos e isso, ao que parece e felizmente, jamais terá fim antes do fim da própria humanidade.

 

 



[1] Nem mesmo na classificação de Lineu a expressão “gênero” é utilizada para identificar “sexo”.