terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Monteiro Lobato, um biógrafo.

Monteiro Lobato foi um biógrafo. Não um biógrafo comum, desses que se dedicam a pesquisar a vida das pessoas, identificar detalhes, entrevistar parentes e publicar algo em torno de 500 ou 600 páginas, começando pela identificação de pais e avós e terminando, quando é o caso, com o enterro daquele que ali já virou um personagem. Claro! Há aqueles que são auto biógrafos. Alguns super interessantes como Saramago e seus Cadernos de Lanzarote, outros menos interessantes como Caetano Veloso e suas Noites Tropicais. De toda maneira, há biógrafos e biógrafos, mas poucos ou quase nenhum podem ser comparados a Monteiro Lobato.
Em primeiro lugar porque ele não escreveu sobre uma pessoa, mas sobre um lugar e, como não há como falar dos lugares sem que se evidencie sua identidade, no caso de Lobato ele teve de falar das pessoas que faziam daquele o lugar sobre o qual ele queria falar.
O segundo ponto é que ele não foi atrás de nenhum documento, não entrevistou ninguém, não se imiscuiu na vida de ninguém. Os personagens do lugar que ele biografou ele mesmo os inventou e, por isso mesmo, eles eram do jeito que lhe pareceu melhor. 
O terceiro ponto é que ele não biografou nem o começo nem o final daquele lugar. Fico imaginando que não teve tempo, mas isso é mesmo só fruto de minha imaginação. Talvez uma biografia como essa ficasse muito sem graça (como poderia comentar uma de seus personagens) ou nem mesmo fosse do interesse dos seus leitores... bom... não importa: o fim daquele lugar não teve registro por parte do seu biógrafo principal e assim, algumas gerações de leitores que acompanharam a biografia ficaram com ela em suas memórias, foram por ela marcados indelevelmente (como eu, por exemplo) e, vez ou outra, respiramos fundo e fazemos o lugar voltar à vida. 
Mas, o fato é que nos dias de hoje Lobato “passou da moda”. Os livros para crianças foram sendo reduzidos a um amplo conjunto de belas imagens e o esforço da leitura foi sendo colocado como um empecilho para os novos leitores. Creio que isso é uma tolice sem fim, que crianças leem longos parágrafos quando neles estão escritos segredos e aventuras que, de alguma maneira, lhes permita construir imagens em suas cabeças, bem como se debruçam sobre imagens relativamente incompreensíveis quando buscam resposta a alguma dúvida – o fascínio por mapas é um exemplo disso. Bem, não importa... de que valeria uma discussão acirrada com pedagogos e editores ciosos de suas verdades para os comentários que estou fazendo?
O que sei é que li Reinações de Narizinho ao menos por cinco vezes e sei de gente que ultrapassou essa cifra. Naquela idade não me interessava saber o final, mas acompanhar a história, me deliciar em ser um observador, em saber sei lá o que de sei lá o que, desde que fizesse parte daquele imaginário, daqueles personagens, daquele mundo que, para nossa conversa, chamarei apenas de Sitio.
Hoje, passado dos 65, as imagens já estão um tanto quanto soltas. O que sei é que foi com Lobato que descobri que havia uma história do mundo e um mundo das fadas e da pura fantasia, um mundo das máquinas simples e um mundo do petróleo e da geologia, havia também um mundo da mitologia grega e o mundo do Dom Quixote, que a minha língua possuía uma gramática, mas que gramática não era a garantia de um bom texto, de que meus números tinhas uma aritmética e que isso tinha uma ordem gramatical, soube de coisas da astronomia, da geografia do mundo e do mundo mágico que rondava a cultura popular daqueles tempos. Aprendi que uma família podia ser a junção de uma boneca, um rinoceronte, um menino e sua prima e uma avó e sua cozinheira, contando com ajuda sistemática de uma espiga de milho falante metida a cientista. Aprendi a achar os subversivos mais interessantes que os conformados ou os defensores do status quo. Diferente dos adultos que conhecia, logo nas primeiras páginas do Reinações aplaudi os aplausos de Narizinho quando soube que os personagens dos contos de fada queriam fugir de seus livros embolorados em busca de novas aventuras. A vida sem aventura é a vida sem magia e isso não tem graça. O politicamente correto é, de fato, a postura mais incorreta que existe. 
Bom... nos dias de hoje se nega até mesmo a literatura de ontem e, portanto, os preconceitos típicos das antigas fazendas escravistas do vale do Paraíba se tornaram um impedimento moral para que as crianças fossem estimuladas a ler o Biógrafo do Sítio. Não importa (ou importa?), mas nesses dias em que a esquerda se mostra moralista e assexuada fazendo críticas à direita que chama de conservadora (e é de fato), biógrafos desse tipo serão colocados na fogueira dos livros indecentes. Pela direita porque o autor era comunista, pela esquerda porque ele era racista e, se tudo acontecer como deve ser em uma boa História, Lobato voltará às prateleiras como um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX. A biografia que escreveu é atemporal porque era daquele tempo. Subversiva, revolucionária porque, carregada de vida, era também reacionária, conservadora como os revolucionários daquela época. 
Quem seria capaz de escrever um livro infantil onde os seres humanos se tornaram alimento para os pássaros e andavam pelados pelas ruas, onde Hitler foi encontrado escondido como uma barata num vão de um rodapé e as minhocas se tornaram a principal comida de uma comunidade em torno de um balde? Quem atormentaria a cabeça de um pequeno leitor se perguntando o como Hércules tirou a pele do Leão de Nemeia se ela era indestrutível? Quem colocaria para pequenos leitores dúvidas linguísticas associadas ao significado de “vaca” em língua portuguesa ou, ainda, chamaria de herói o bárbaro que, no momento de beijar os pés do Rei, levantou-o e o jogou para trás? Seria viável para seus detratores colocar um menino e um saci discutindo o significado de liberdade? 
Bom... fica aqui minha homenagem pública ao meu mestre, sobre cujos textos mergulhei minha infância e que agora ainda povoa meu imaginário quando escrevo meus livros didáticos ou entro em uma sala de aulas. Assim como a minha, e creio que inadvertidamente, Lobato, ao escrever a biografia do sítio também escreveu a História de muitos de nós, antes mesmo que ela ocorresse.