quinta-feira, 9 de abril de 2020

Crônica em torno do Corona vírus

Fui capturado pelo corona vírus. Não sei se nesse momento ele está presente e ativo em meu corpo e vai me derrubar em alguns dias, ou se, pelo contrário, ainda não foi incorporado ou, agora na melhor das hipóteses, ele já passou por aqui e foi devidamente combatido pelo meu sistema imunológico e, pelo menos por enquanto, já conquistei minha imunidade. Não é a isso que chamo de captura. Trata-se do fato de que, no momento, ainda preservo as chaves de minha casa, mas estou trancado dentro dela. Tenho medo do que possa estar do lado de fora. Algo como se estivesse vivendo os velhos (porque já se tornaram velhos) filmes sobre a presença de seres malignos se deslocando pelas ruas, sem culpa ou pré julgamento, simplesmente atacando os que ainda estão no patamar hoje aceito de normalidade e, assim, querendo transformar a todos em uma única espécie. Fui capturado porque nesses tempos ele me possui, toma conta de minha mente porque toma conta de meus medos. O medo de ser infectado, o medo de infectar, o medo do outro que pode me transformar em vítima ou, o que não é o mesmo mas é igual, pode se transformar em minha vítima. E assim, inconsciente de minha real situação evito abandonar a prisão, considerando que, paradoxalmente, ela é o único lugar livre de que disponho.
A cidade em que vivo,  geralmente buliçosa, agora mergulha no silêncio, para irromper, em torno das 8 horas da noite, num festival de aplausos que, como se produzido pela mesma mágica que move a todos a comemorar que ainda estão vivos e dar as devidas graças aos heróis do sistema de saúde público e pública, também a seguir as janelas se fecham, as luzes se apagam e o silêncio volta a dominar por mais 24 horas. 
Acho que enlouqueço. Me tornei uma pessoa mórbida que acompanha, também a cada 24 horas, quantos foram os que morreram e, nesses últimos dias, já estou comemorando que as centenas de mortos da última contagem é menor que da penúltima. Converso com amigos ou com aqueles que comigo compartilham da prisão e falamos do que acontece lá fora. Onde é o lá fora? As ruas, os parques fechados, os supermercados perigosos e as farmácias onde só se entra um de cada vez. 
Um metro é a distância mínima: a regra básica da sobrevivência. Não importa quem seja, considerando que os zumbis desses últimos meses não rastejam, não grunhem, não têm seus rostos e mãos decompostos como nos filmes. Meu inimigo potencial sorri, anda normalmente e, vez ou outra, cada vez mais vez que outra, se cobre com uma máscara. Não sei ao certo se seu dilema é não me infectar ou se ele desconfia de minha respiração ou, ainda, se, como eu, ele não tem a menor ideia de como está participando desse ciclo de autodefesa e autopiedade.
Hoje vi um artigo do El País, na sua versão brasileira, prognosticando que o vírus será vencido pela ciência e não pela religião e fiquei imaginando que, se o colunista fosse um pouco mais religioso, diria: com a graça de Deus. 
Em dois outros artigos, presentes também na versão espanhola, um articulista se pergunta se chegou a hora de uma constituição global, enquanto um filósofo chinês, reticente ao partido comunista de seu país, afirma que o capitalismo chegou ao fim. Fico a pensar se tudo isso não se associa, de uma maneira ou de outra, ao fato de que nas crises sempre surgem profetas, mais ou menos auto proclamados, de todo tipo, assim como nosso Messias brasileiro profetizando que o vírus será expulso do Brasil. 
A ambiguidade dos discursos, em nome da ciência ou da religiosidade (também há aqueles que se auto proclamam como ciência espiritual), parece ser o carro chefe do desespero e de seus gritadores, agitadores ou seja como seja que se possa identifica-los. 
É mergulhado em tais pensamentos que, daqui de uma das janelas de minha prisão (gradeadas para que os ladrões não entrem e não para que eu não saia, pois, no final das contas, aqui a violência é mínima mas o “seguro morreu de velho”), volto a observar o silêncio das ruas que, desde que as conheço, sempre se mostraram ruidosas (poucos carros em relação às grandes avenidas, mas ponto de encontro dos moradores do bairro) e sei que o caminho que percorremos em nossos retiros não depende somente da ciência (seja lá o que isso signifique) nem da religião, mas da mistura entre o medo ao desconhecido e à morte e o reconhecimento de não se estar só apesar do isolamento. Ontem também fui à janela gradeada bater palmas e. em meio aos aplausos das 8 da noite, um carro da policia passava com as sirenes ligadas em sinal de agradecimento e os aplausos se tornaram mais fortes, mais audíveis. 
Há, evidentemente, algo em tudo isso que vai para além de se acreditar na ciência, de se imaginar como os povos e seus governos e suas elites vão se comportar ao final da tragédia. 
Entre outros pensares, fico acompanhando Trump e seus assaltos descarados em nome da “américa para os americanos”, imaginando que tal postura poderá ser uma alavanca fundamental para uma segunda vitória nas próximas eleições e, mais ainda, me perguntando se a saída de Bernie Sanders da disputa não estaria associada à compreensão de que Trump vai continuar na presidência dos EUA e, portanto, permanecer candidato é uma batalha perdida tanto dentro do partido democrata quanto em relação ao eleitorado americano. Trata-se de algo muito próximo da lógica da família mafiosa onde o capo assim permanece porque mata e rouba em nome da sobrevivência dos seus. Nada disso, nem mesmo o Boris Johnson na UTI, nem os milhares de mortos e discursos desconexos, me parece, tendem a derrubar o capitalismo enquanto modo de produção e reprodução da vida. É preciso, de fato, que projetos políticos sejam disputados e façam sentido para os povos, e o que vejo é o fortalecimento do poder de Estado no seu formato mais próximo da tradição fascista, justificado pelo objetivo geral de salvar nossas vidas e controlar o comportamento dos reticentes, algo que a anarquia e o individualismo libertário (ou, no jargão dos neologismos, o tal do neoliberalismo) jamais conseguiria. Já se fala nessa tal Constituição Planetária, que quase certamente nos levaria a algo próximo do Estado Único. A ficção científica de caráter catastrófico vai se tornando proposta política salvacionista. 
Uma outra reflexão já começa a tomar conta do imaginário: o questionamento quanto ao volume e velocidade com que as estruturas produtivas estimulam o consumo e aceleram o processo geral de acumulação ampliada do capital (o jargão é conhecido). Trata-se, portanto, não exatamente do Estado Mínimo, mas do Consumo Mínimo. Algo que permita à humanidade sobreviver sem destruir as condições básicas de sua sobrevivência e, melhor que isso, sobreviver enquanto humanidade e não em base aos processos de exclusão criados pelo desigual acesso ao mercado e, obviamente, à distribuição de renda. Nossa salvação, portanto, não estaria na retomada do crescimento dos PIBs, mas, justamente, no seu inverso, associada a uma outra maneira de se acessar (participar de) o processo produtivo (redefinir a divisão social do trabalho) e as diferentes maneiras pelas quais se tem acesso ao produto geral socialmente criado. Em poucas palavras, tem gente imaginando que a crise sanitária se desdobrará na redefinição das bases sobre as quais se sustenta a sociedade capitalista. 
Bem... que dizer? Talvez que a prisão seja o melhor lugar para se sonhar com a liberdade? Bom... fico aqui, com as chaves de casa na mão e a decisão mais que firme de não abrir a porta e sair despreocupado pelas ruas.