quinta-feira, 4 de março de 2021

 

Os fundamentos geográficos do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels

Douglas Santos

 

Resumo: Exercício de caráter teórico e metodológico que, tendo como referência o Manifesto do Partido Comunista escrito por Marx e Engels, tem por objetivo evidenciar e comentar o referencial geográfico utilizado pelos autores para o desenvolvimento e explicitação dos conceitos fundamentais presentes na obra. 

Palavras chaves: Marx e Engels; Manifesto Comunista; Geografia. 

 

 

Resumen: Ensayo de carácter teórico y metodológico, que tiene como referencia el Manifiesto del Partido Comunistaescrito por Marx y Engels, con el fin de resaltar y comentar la referencia geográfica utilizada por los autores para el desarrollo de sus conceptos fundamentales.

Palabras clave: Marx y Engels; Manifiesto Comunista; Geografía.

 

 

Abstract: This theoretical and methodological exercise highlights and comments upon how geographical notions are used by Marx and Engels in their Communist Manifesto to unveil and state key concepts of that seminal text. 

Keywords: Marx and Engels, Communist Manifesto, Geography. 

 

 

Explicações mais que preliminares

Obviamente o que veremos a seguir é um conjunto de comentários “não autorizados”. Digo o óbvio para que o leitor possa considerar alguns dos pontos que acabaram definindo o conjunto de proposições e reflexões que fiz, no entremeio de alguns parágrafos que fazem parte do Manifesto, com o mesmo desprendimento com que foram feitos. Para dizer o mínimo e servir de ponto de partida, creio que vale afirmar que não tive, em nenhum momento, a intenção de corrigir, dirimir dúvidas, propor variantes, minimizar afirmações ou qualquer outro tipo de postura que não fosse procurar, em cada um dos parágrafos, este ou aquele fundamento geográfico (nem mesmo estou afirmando que, do ponto de vista dos autores, a noção de “geográfico” é a mesma que está aqui sendo defendida) que, imagino, foi utilizado pelos autores para o desenvolvimento dos conceitos, para exemplificação, ou mesmo com o objetivo de desmontar este ou aquele argumento que pudesse entrar em rota de colisão com os princípios defendidos no Manifesto

Um segundo aspecto a se considerar é que, à medida que escrevi meus comentários, fui eliminando os parágrafos que, mesmo podendo servir para os propósitos a que me propus, acabariam tornando este artigo muito mais longo que o próprio Manifesto. Não pretendi fazer um texto exegético, mas um exercício de leitura a partir de algum dos legados da tradição discursiva da ciência geográfica. Portanto, tal como no texto comentado, não há aqui bibliografia no sentido acadêmico do termo[1], e nem sequer a disposição de discutir outros textos que foram construídos com propósitos semelhantes. Agi assim para evitar desvios que nos levariam a mudar o foco e, portanto, os objetivos a que me propus. 

Sem mais delongas, vamos ao que nos interessa. 

 

Abertura do Manifesto

 

“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.”, inicia o Manifesto. Fico imaginando que esse primeiro parágrafo foi, de alguma maneira, inspirado pela obra de Shakespeare, precisamente a história de Hamlet, marcada pela presença do espectro de seu pai que, basicamente, quer informar o filho de que havia sido assassinado pelo próprio irmão, o qual, além de ficar com o trono, ficou também com a cunhada. Um clássico da literatura mundial que carrega o peso da constatação que introduz o Manifesto. Acima de tudo, do ponto de vista das tais “potências da velha Europa”, o comunismo (e os comunistas) paira assustadoramente, informando que seus poderes estão sendo corroídos, colocados em xeque e, sem dúvida, mais que uma simples ameaça, o medo provocado pelo espectro articula interesses normalmente conflitivos entre si. 

Trata-se, portanto, de explicitar o lugar de que se vê e a partir do qual se compreende a necessidade desse Manifesto. Ele foi escrito na Europa, em meio a uma reunião de comunistas europeus que avaliavam e se organizam em meio a convulsões sociais que se multiplicavam principalmente pela França, Alemanha e Inglaterra; é, portanto, a partir do ponto mais avançado da realização da sociedade capitalista e de seus conflitos que os autores fizeram este ou aquele comentário, esta ou aquela proposição e assim por diante. 

 

Burgueses e Proletários

 

Depois de reafirmar que a História da humanidade é a História da luta de classes e que a sociedade capitalista é o resultado do sufocamento das relações típicas do feudalismo, tendo-se constituído igualmente sobre uma cisão profunda das classes sociais, os autores observam que:

A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em ascenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

Nesse ponto reconhecemos, efetivamente, os parâmetros geográficos que foram utilizados: se os autores identificam o significado da expansão da burguesia mercantil e, nesse caso, uma espécie de anexação de diferencialidades ao contexto europeu, com novos produtos, culturas, processos produtivos, mercados, eles não terminam o parágrafo sem reconhecer que tudo isso permitiu o rápido desenvolvimento do tal “elemento revolucionário da sociedade feudal”, isto é, a própria burguesia. 

Não caberia aqui explicitar ou elencar informações que podem ser encontradas em um sem-número de livros de História. O fundamental é lembrarmos que a ampliação do domínio português e espanhol pode, num primeiro momento, ser figurativamente caracterizada como horizontal, mas tal horizontalidade está mais no plano do imaginário do que na realidade. 

Trata-se, portanto, de um processo de múltiplas direções. As elites ibéricas financiam aventureiros com o objetivo de prospectar o que existe no mundo extra europeu, com o objetivo implícito de dominar a própria Europa. No entanto, isso não ocorre sem interferências diretas nas relações sociais típicas do feudalismo e, por conseguinte, sem que sejam reproduzidos para muito além das suas fronteiras imperiais os fundamentos que permitem o surgimento, expansão e consolidação de relações burguesas. Portugueses e espanhóis aprenderam, a duríssimas penas, que existir enquanto classe dominante em relações tipicamente mercantis recria seus contrapontos no interior de sua própria classe. Burgueses se reproduzem no interior da Europa e, obvia e igualmente, no interior da América. Por isso mesmo o processo de libertação dos países americanos (o identificador geográfico, ou topônimo, é carregado de significados) não é um distanciamento dos fundamentos que criam as burguesias nas “novas terras”, mas um grito das burguesias locais (agora americanas) clamando por participar do processo em igualdade de condições. Os países americanos não são países à toa, são criações da expansão mercantil que conquistarão sua identidade como criaturas que se desligam dos criadores, para a eles se juntarem sob outras condições e, portanto, não importa o fato de que o fazem acelerando seu declínio político e econômico, uma vez que as burguesias só marginalmente fazem pactos entre países, concentrando-se nas relações entre interesses de classe e frações de classe.

Isso tudo reorganiza a Geografia planetária. O que estava distante tornou-se próximo, o que estava isolado tornou-se cooperante, o que era o outro tornou-se mercado e, por fim, tal como ocorreu em todos os impérios que antecederam o capitalismo (e tiveram uma escala territorial muito menor), são absorvidas, redefinidas e apagadas as diferenças que possam impedir o domínio e garante-se a existência daquelas que, de uma maneira ou de outra, conjuntural ou estruturalmente, colaboram na reprodução ampliada das relações fundamentais de acumulação de capital (e, portanto, não de qualquer acumulação ou de qualquer riqueza).

É com as seguintes palavras que o texto continua e explicita o que acabo de afirmar:

A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais: a procura de mercadorias aumentava sempre. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América: o mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação por terra. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a extensão da indústria; e, à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo plano as classes legadas pela Idade Média.

Um ponto importante a se realçar aqui: até o século XVIII era mais rápido fazer uma viagem de Amsterdam até Nova Iorque do que da mesma cidade até Roma. Era preciso transformar o relevo das terras emersas, tornando-o tão liso quanto os que eram proporcionados pelos oceanos. Assim, foram construídos os canais na Inglaterra e na França (responsáveis, inclusive, pela elaboração de uma cartografia de subsolo do reino unido que estimulou uma releitura geral da estrutura do planeta) e houve, a seguir, a construção de uma complexa rede de transporte ferroviário que redefiniria o significado de relevo, distância e, portanto, da velocidade geral com que eram capazes de circular as mercadorias no interior do continente. É também digno de nota o papel das ferrovias na colonização do que viria a ser os Estados Unidos da América e o Canadá. 

Retomando o Manifesto, veremos como os autores terminam o parágrafo citado acima:

[...] a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

Do ponto de vista político, a identificação de qual seria o papel dos governos modernos tem produzido uma bibliografia impossível de se acompanhar, até porque parte dela deixa de lado o significado de classe social para identificar o funcionamento do Estado e, em meio  a este emaranhado de discussões, a dimensão geográfica do Estado parece ter se tornado nada mais que o simples senso comum, a obviedade, o tal do mapa político que se confunde com a distribuição de países. De fato, o que está em jogo é o significado de fronteira e, na realização cotidiana do processo geral de reprodução e acumulação capitalista, o que, no final das contas, as fronteiras separam. Se o movimento que consolida o colonialismo já havia apontado que o domínio dos estados nacionais europeus nada tinha de nacionais e ultrapassava em muito o território europeu, o andamento geral de todo o processo nos aponta para, no século XX e até os dias de hoje, questionarmos se, realmente, países como os Estados Unidos da América possuem fronteiras na sua relação militar com o mundo. O mesmo podemos afirmar do papel geopolítico da União Europeia e de organizações como a OTAN, e lembrar como se realizou a invasão da África depois do Congresso de Berlim. Em todos os exemplos, a contiguidade territorial é uma ficção e o comando geral é, de fato, uma relação entre elites poderosas conjugadas no sentido de garantir um mundo formalmente fragmentado, mas efetivamente unificado no interior de um mesmo sistema produtivo.

Vale, ainda, resgatar a maneira pela qual os autores terminam o parágrafo, sem que aqui seja necessário qualquer comentário: “A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revolucionário.”.

Na continuação, o texto nos convoca a observar algo absolutamente vertiginoso. É interessante notar como os autores articulam os elementos que, de maneira efetiva, participam do processo geral que identifica a sociedade capitalista: “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, como isso, todas as relações sociais.”. Definido o sujeito (a burguesia), trata-se agora de definir suas ações e as consequências que delas advêm. Do ponto de vista geográfico, a imagem é definitiva. Incessantemente os instrumentos de produção são revolucionados e isso significa, de forma direta, que o mundo como um todo é incessantemente revolucionado. Poderíamos observar tudo isso na simplicidade dos dados econômicos, porém nosso interesse é olhar para a dimensão geográfica da afirmação. Para tanto, é preciso ponderar que novas máquinas requerem novas formas de trabalho e estas, novas relações que controlam e reproduzem o trabalho e, assim, transforma-se toda a sociedade.

Assim, quando identificamos que em uma determinada formação geológica/geomorfológica, por exemplo, há uma grande quantidade de ferro, carvão ou qualquer outro mineral que interesse ao processo produtivo, rapidamente sua localização sofrerá mudanças e, portanto, igualmente sua Geografia. De jazida se transformará em matéria prima, e da sua condição de depósito mineral, passará a estar agora no interior de uma siderúrgica (por exemplo). Assim, transformando tudo isso em energia e aço já observaremos uma nova condição de ser de cada um dos elementos e, nesse sentido, também outra será a sociedade que, agora, dispõe de mais energia e mais aço. Na sequência, tudo se transformará em ferramentas, automóveis, geladeiras, máquinas de lavar ou gabinetes de computadores e, assim, o que estava na jazida, agora está redefinindo a planta fabril ou nossas casas. Isso, no entanto, não basta, porque a presença de cada um desses objetos exigirá estradas, energia elétrica, redes de Internet e assim por diante, e tudo isso junto já é, em si e para si, o retrato mais que explícito de uma nova sociedade que se reinventa continuamente – uma sociedade que, reafirmando a proposição hegeliana de movimento, é deixando de ser.

É nesse sentido que os autores afirmam algumas linhas depois:

Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar.

Encontraremos também a famosa afirmação que inspirou maravilhosamente a Marshall Berman: “Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.”. Disto chegamos, novamente, à escala em que toda a dinâmica se realiza: “Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.”. Completam ainda os autores:

Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional. [...] São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. 

No rastro dessa proposição o que se retoma é que, mesmo no interior daquilo que genericamente chamamos de “classes dominantes”, nem mesmo tais domínios podem ser considerados como algo perene. Mais uma vez, o que os autores observam é que há burgueses mais revolucionários que outros e pertencer à lista dos “outros” é se posicionar como um verdadeiro burguês “reacionário”, os quais, certamente, serão colocados na marginalidade do processo. O aspecto aqui levantado está diretamente associado às tentativas de garantia dos tais “capitais nacionais”, cotidianamente cercados pela indústria que se expande e se consolida na intricada rede produtiva mundializada. Da mesma maneira, produzir matérias primas já não é garantia de se ter um parque industrial por perto e, no contraponto, ter uma indústria não significa consumir matérias primas produzidas ou disponíveis num mesmo país. Tal proposição nos aponta para uma questão central: o imperialismo capitalista não se faz pela via dos países, mas sim pela articulação de classes. O mapa-múndi chamado pomposamente de político e que pretensamente nos mostra o conjunto dos países do mundo na verdade apenas evidencia um dos aspectos da formação capitalista, pois sobre esse mapa se articula o movimento geral da economia e da política que sustenta tal fragmentação para garantir, justamente, um tipo de unidade. 

Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual.

Uma descrição desse tipo não necessita de comentários para quem vive no século XXI, no qual, para além das guerras, do mercado financeiro e dos mercados, até mesmo a noção de pandemia parece se consolidar como a nova relação escalar com a qual vamos conviver neste presente e no futuro. Por isso mesmo, vale realçar ainda um aspecto já apontado no final do parágrafo anterior: “As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal.”.

Desde Ulisses (1922) de Joyce, até Em Busca do Tempo Perdido (1913) de Proust, Cem Anos de Solidão (1967) de Gabriel Garcia Marques ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) de Saramago; desde Kama Sutra (1883) e As Mil e Uma Noites (1885), traduzido para o inglês pelo lorde, espião e geógrafo Richard Francis Burton, até o aclamado A Arte da Guerra (escrito no século IV Antes de Cristo e publicado pela primeira vez na Europa em 1772) de Sun Tzu; em meio a tudo isso o romance Europeu, como bem detectou Franco Moretti (em seu Atlas do Romance Europeu), subverte as escalas de ação de seus personagens. Alguns anos depois, a indústria do cinema irá se tornar um padrão de leitura, de definição ética e estética do mundo a partir dos ideólogos devidamente posicionados em Hollywood, somada ao conjunto de comportamentos padronizados reproduzidos pela televisão em todo o mundo. No entanto, há ainda mais: das pesquisas em astrofísica até a descoberta de diferentes vacinas contra o Covid-19, difícil é dizer em que lugares do mundo e com que parâmetros se desenvolvem as pesquisas, ficando mais claro saber quem e como acumulam capital os grupos financeiros que comandam o processo. 

Um aspecto a mais, no entanto, deve ser sublinhado: assim como tais poderes de caráter planetário arrastam para um mesmo mercado, para um mesmo conjunto de valores (cosmogonias, cosmologias), para um mesmo sentido de ciência e de se estar ciente, o processo de realização e consolidação capitalista buscará destruir – ou, ao menos, reduzir – toda ou qualquer resistência, seja ela armada ou não, e é nesses termos que o Manifesto nos apresenta o fenômeno:

Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.

A perspectiva que se observava em meados do século XIX ainda não chegou ao seu final. Enquanto, em nome de ser moderno ou avançado, povos inteiros ajustam-se aos parâmetros das relações capitalistas, na maioria das vezes pelo consumo dos produtos de sua indústria, por vezes pelo reordenamento geral das relações sociais, tais processos levantam, igualmente, fronteiras sangrentas em nome do Islã ou da Civilização Ocidental, em nome da fé em algum deus ou em nome da defesa da democracia. Ambos, no entanto, consomem da mesma indústria armamentista, querem o controle das mesmas matrizes energéticas, vivem e matam em nome dos mesmos fundamentos que garantem o status quo

Na sequência, o texto aponta para um outro aspecto do mesmo movimento e o faz associando as novas maneiras de realização das relações entre cidade e campo e o sentido que tudo isso possui em função da concentração das forças produtivas. Vejamos: “A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural.”. 

Submeter campo à cidade é uma afirmação que, na sua aparente simplicidade, tornou-se o mote de parte considerável da obra de Henry Lefebvre. Desde O Pensamento Marxista e a Cidade até O Direito à Cidade, a proposição do Manifesto nos permitiria (e obrigaria) a percorrer um caminho de reflexão impossível de se fazer aqui. O fundamental é perceber a inversão, o movimento que permitiu que hoje mais de cinquenta por cento da população mundial viva em cidades, que os hábitos e os fundamentos do processo produtivo tipicamente urbano (e, portanto, com o formato da fábrica) subsumisse a cotidianidade do campo. 

As máquinas, a divisão do trabalho, o assalariamento, a monocultura, o mercado na dinâmica das commoditiesmarcam os formatos (o paisagístico) gerados por uma processualidade cujo fundamento encontraremos no parágrafo seguinte: “A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos.”. Essa mistura entre a redistribuição territorial do processo produtivo e a concentração de meios de produção e mercados vai deslocando de Londres, Paris, Berlim, para Tóquio, São Paulo, Nova Iorque, Cidade do México, Pequim, Nova Délhi e tantas outras o significado paradigmático do que significa concentração de pessoas nas diferentes maneiras com que se concentram capitais. Esse movimento que ainda nos meados do século XIX tinha o formato da ação colonial, principalmente do que já era o inglês, parecia apontar para os autores o que viria a se consolidar no século XX – o fim do colonialismo institucional e a articulação estrutural do planeta em Estados Independentes do ponto de vista formal, subordinados uns aos outros pela impossibilidade de sobreviver para além (ou aquém) da trama geral de produção e circulação de mercadorias tal como foi desenhada pelo desenvolvimento do capitalismo.

Creio que é justamente nesse diapasão que o Manifesto apresenta o parágrafo seguinte:

A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.

Daí aos monumentais acordos de livre comércio, à formação de União Europeia, o Mercosul, a Alca e o recente acordo asiático sob o comando da China, os quais acabaram demonstrando que o movimento que levou ao fim das tais das “províncias independentes” segue engolindo, hoje na escala de países e até continentes inteiros. 

Bem... paro por aqui. Se o que vimos até este ponto é que a construção dos fundamentos lógicos do Manifesto foi realizada sobre um conjunto de informações, inferências e constatações de caráter geográfico, o que vem a seguir nesse texto é, de fato, o chamamento que os autores fazem aos comunistas e, mais que isso, a tentativa de convencer os não comunistas de que, no final das contas, o tal do Espectro que assustava as elites europeias era muito mais que um fantasma a ser exorcizado. Tratava-se de um movimento criado no interior do próprio desenvolvimento do capitalismo, o ovo de sua serpente, a identificação da burguesia como aquela que, pretensiosamente, cria corvos e se considera impune. Assim, a sociedade burguesa, que não pode viver sem o proletariado, cria e necessita daquele que será seu verdugo. Vale ler cada parágrafo com atenção. 

 

Bibliografia

 

BERMAN, M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

GARCIA MARQUES, G. Cien Años de Soledad. Barcelona: Summa Literaria, 1985.

HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la História de la Filosofia. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1985. 3 vols.

JOYCE, J. Ulysses. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

LEFEBVRE, H. El Derecho a la Ciudad. Barcelona: E. Península, 1978.

LEFEBVRE, H. O Pensamento Marxista e a Cidade. Póvoa de Varzin: Ed. Ulisséia, 1972.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In Obras Escolhidas, Vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, s/d. 

MORETTI, F. Atlas do Romance Europeu. 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003.

PROUST, M. Em Busca do Tempo Perdido. São Paulo: Ediouro, 2002. 3 vols. 

SARAMAGO, J. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SUN TZU. A arte da guerra. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 



[1] A lista de livros que coloquei no final tem por objetivo indicar alguns títulos que foram realçados no transcorrer do texto e que serviram, somente, para dar mais referências aos comentários.