quinta-feira, 18 de junho de 2020

Raça e Racismo, alguns apontamentos sobre uma farsa que se realiza como tragédia

Fico a imaginar que um ato fundamental da política antirracista é reconhecer que, definitivamente, Raça não existe como categoria identificadora das diferenças entre seres humanos e a literatura no campo da biologia já parece ter esgotado o assunto[1]. Dessa maneira, é preciso afirmar que raça é uma invenção de racistas e que, por serem representantes das elites, por fazerem sentido do ponto de vista de quem quer se manter no controle, reproduz-se reproduzindo-se enquanto ideologia de muitos dos “racializados” em seus diferentes formatos. Racistas e racializados se retroalimentam e não importa se o outro é árabe ou judeu, se é o branco do ponto de vista do norte americano ou o branco do ponto de vista do latino europeu (por incrível que possa parecer, ser latino é uma condição originariamente europeia) ou, mesmo, se se é o negro que pertence às elites que se mantêm no poder dos países africanos ao sul do Saara (o que nos faz lembrar que nas sociedades de maioria negra o racismo permanece, só que moldado com outros matizes, na sua maioria de caráter étnico). 
O racismo não é um problema somente do racista, da mesma maneira que o escravismo não é um problema somente do senhor de escravos. Podemos afirmar que tanto o senhor de escravos quanto o racista, independentemente de ambos se confundirem ou não, são os principais responsáveis pelo desenrolar de toda essa História, pois, na melhor forma da novela policial, vale sempre perguntar: “a quem interessa o crime?”. Mas, da mesma maneira que festejamos o emprego novo, sem levarmos em conta que acabamos de nos ajustar à forma geral de exploração do nosso trabalho, vendendo-o como força de trabalho, igualmente a violência do discurso racista se realiza quando aquele que estigmatiza convence o estigmatizado da justeza de seu discurso e de um amplo conjunto de ações que garantem a continuidade dos modelos sociais de exploração. 
Como parte dessa luta, é preciso esvaziar o racismo de seu significado e, para tanto, é preciso esvaziar o discurso do racista de qualquer significado plausível. Seria isso suficiente? Evidentemente que não. Porque o discurso se realiza em uma quase infinita variedade de formatos, tais como a matança dos Tutsis, dos Armênios, dos Judeus pelos nazistas e dos Palestinos pelos Judeus, dos comunistas indonésios (500.000 mortos sobre os quais pouco ou nada se fala) ou o caso dos Rohingya em Myanmar, ou dos negros assassinados/marginalizados nos EUA (onde se misturam os militantes da Ku Klux Klan e uma massa disforme de policiais – muitos deles igualmente negros), e em toda a América Latina, das mulheres de todo mundo assassinadas e subordinadas em seus trabalhos (além das práticas relativamente localizadas de mutilação genital, casamento forçado de adolescentes, estupros, tráfico humano para prostituição etc.), das diferentes opções sexuais reduzidas a um problema de gênero, além dos Árabes tratados como terroristas ou inimigos dos EUA em qualquer lugar do mundo (a presença de tropas americanas e europeias no chamado Oriente Médio é só um dos sintomas dessa doença) e assim por diante, pois, no final das contas, não há como dar conta da lista que poderia identificar todas as formas de preconceito e o formato que tomam suas violências. 
O racismo é só uma delas e é a justificativa ideológica para a eliminação/subordinação do outro e, pela mesma razão, Raça não é uma categoria que pode ser utilizada na luta contra esse mal. Não posso lutar contra o racismo porque sou negro e imaginar que tal violência existe somente ou prioritariamente contra negros e o mesmo deve ser considerado se faço parte ou me identifico enquanto índio, judeu ou árabe ou com qualquer outro tipo de identificador. Pertencer a tais grupos não torna minha luta nem mais nem menos legítima. É preciso compreender que a luta contra o racismo se deve ao fato de raça não existir e não o de reafirmar que raça existe, que pertenço a alguma delas, mas nem por isso sou inferior.  O direito à diferença não pode ter no conceito de Raça seu fundamento identificador. Essa luta é contra o discurso e a atitude de parcelas das elites e dos que, mesmo não pertencendo a elas, acreditam e subordinam, porque são ou não subordinados, por tal discurso. Não se pode lutar contra a criminalização apriorística dos negros (ou quaisquer outras identidades, seja pela cor da pele, pela identidade ou opção sexual, pelo país de nascimento, pela crença religiosa etc.) afirmando que tudo resulta do fato das mãos genéricas dos  brancos (ou qualquer outra identidade generalizante atrás da qual se escondem os verdadeiros algozes) se encontrarem manchadas de sangue, ou, como ouvi certa vez: se não tens sangue negro nas veias, certamente o tens em vossas mãos, até porque, sem nenhuma dúvida, ser negro não me exime de ter sangue de algum outro negro em minhas mãos, em nome, inclusive, das formas de dominação que utilizam do racismo para manter o outro sob controle, isto é, naquele que é transformado em ser genérico para que se possa dominar e, da mesma maneira, no interior do processo em que alguns se transformam em ser genérico para se proteger. 
Há, de fato, uma condição a ser conquistada: a de que todos pertencemos a uma mesma raça, a raça humana. Para isso é preciso lutar contra as diferentes formas de opressão, sendo que essas, de forma sistemática, usam de indicadores/denunciadores superficiais para evidenciar quem manda e quem obedece, quem organiza as formas básicas de trabalho e se apropria do excedente (lucro) e, concomitantemente, do poder político, em contraposição de quem vende sua força de trabalho, mesmo que seja no formato do trabalho doméstico (que nem sempre é feminino), ou do lupen proletariado ou, mesmo, dos jovens americanos vindos das diferentes guerras e perambulando pelas ruas como mendigos com status de herói.   
Essa é a palavra de ordem: raça é invenção de racista. É preciso derrotá-los derrotando suas formas de opressão e, para tanto, faz parte da luta destruir o jogo simbólico que torna tudo isso algo aparentemente natural. Lutar contra o racismo é uma prática cotidiana que ainda durará séculos e é, igualmente, parte da luta pela invenção de uma nova sociedade e, nesse sentido, é preciso lutar contra todas as formas de preconceito, desde os mais arraigados nas nossas culturas como, por exemplo, os sexismos, os machismos, a nossa leitura em relação aos velhos, aos negros e aos índios, só para nos atermos aos exemplos brasileiros mais gritantes, bem como, no limite, ir em busca da superação de nossa condição de proletários.   


[1] Alguns minutos antes de publicar este texto neste blog li algo sobre racismo como mais um presente que nos deixou Saramago: https://elpais.com/cultura/2020/06/17/babelia/1592410098_611950.html

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Sobre velórios, pandemias e profecias.


Você já foi a um velório? Poucos são os que experimentam a vida sem que, em algum momento, se defronte com a morte de alguém relativamente próximo. Diria que, para isso, teríamos de observar somente aqueles seres humanos que vivem relativamente pouco e, por isso mesmo, também pouco experimentam o que significa ter alguém “relativamente próximo”. Nos dias de hoje, são exceção, e deixemos as exceções de lado. 
No momento estou tentando me lembrar das várias experiências que tive nesse sentido. Meus pais, avós, tios, cunhados, sogros, pais de amigos.... e, sem dúvida, um a um, tiveram no rito que sucede a morte a capacidade de mobilizar um pequeno grupo de pessoas, algumas para uma rápida passagem, outras que chegam já no momento do enterro, outras, essas poucas, chegam antes do corpo e só se vão quando não há mais nada que fazer. 
Nos dias de hoje, esses ritos, principalmente nas cidades grandes, já não ocorrem na sala principal das casas. Há lugares especiais para isso e ali (tal como antigamente) se cruzam o choro compulsivo com a conversa em voz baixa (há exceções, como sempre). De qualquer maneira, é um dia diferente para todos, mas, e é isso que me importa, trata-se de um dia desigualmente diferente para cada um. A tragédia, de alguma maneira nos une, mas nos une a partir de relações que não são as mesmas. Um mesmo chamado, se é que se pode usar tal expressão, pode nos levar a ter comportamentos semelhantes por um tempo, mas, considerando que o ponto de partida de cada um não é o mesmo, os desdobramentos também não o serão. 
Estou escrevendo isso por duas razões que se colocaram a partir de estímulos muito diferentes. A primeira delas é o fato de já me encontrar há mais de dois meses relativamente confinado, com direito a ir ao mercado, à farmácia, ao médico e, agora, a passear em horários e lugares determinados, desde que devidamente mascarado, preservando os dois metros regulamentares de distância social e assim por diante. A segunda foi a leitura que acabei de fazer de um artigo de Marilia Pacheco Fiorillo intitulado “A Insubmissão do Real” (https://aterraeredonda.com.br/a-insubmissao-do-real/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-insubmissao-do-real), o qual, do muito que tenho lido sobre a pandemia e suas consequências, diria que está colocado na lista das reflexões mais sensatas dos últimos dias e, por isso mesmo, fica aqui o convite a que a leiam. 
Acontece, por sua vez, que esses dois pontos de inflexão se associam ao meu incômodo em relação à quantidade de profecias que se desbordaram quanto ao futuro da humanidade e o fato de, grande parte delas, realçando este ou aquele aspecto (escolhido com muito critério) do interior da tragédia, perderem de vista que a generalização aparente dos comportamentos humanos tem como ponto de partida a contradição que se impõe entre uma tragédia e a diversidade infinita de variáveis sobre a qual se materializa.
Longe de mim, vale lembrar, afirmar que os acontecimentos recentes que pairam, definem, extrapolam, relativizam e tantas outras coisas mais, a condição de ser do humano, nos impeça de refletir, ponderar, expressar nossa perplexidade e, por que não (?), fazer uma ou outra profecia. Mas, como afirmou Fiorillo “Uma realidade totalmente desconhecida há poucos meses, total incógnita até o momento, pede certa paciência, inclusive do conceito.” E esta paciência, diria eu, sendo algo que se aproxima inexoravelmente da prudência, se associa ao fato de, ao terminar a pandemia seremos pessoas que, de diferentes pontos de vista, em diferentes lugares do mundo, sob condições econômicas, culturais, climáticas, familiares e individuais diferentes, nada diz que isso resultará em qualquer tipo de unanimidade. Por isso a prudência, pois, é preciso lembrar, mais que a simples previsão de como será a humanidade, é o que somos no presente a matéria prima do que seremos no futuro. 
O fundamental, nesse momento, é que a maior parte de nós quer voltar ao que éramos. Não são todos, evidentemente. Alguns estão especulando, manipulando, sobrevivendo, ampliando riquezas e poderes em meio à miséria geral. A maioria, no entanto, vai tombando pelo caminho do desemprego, da fome, do isolamento, da solidão, do medo e, certamente já sendo contado aos milhares, muitos já morreram e outros muitos ainda serão contados como vítimas dessa pandemia. 
Vale considerar aqui dois fatos que se reúnem: 
1.     o vírus, só aparentemente, é algo externo ao humano, um inimigo a ser combatido como se combate um alienígena;
2.     Sua letalidade, abrangência e o fato de ter se tornado o vetor do desmonte social que experimentamos, no entanto, estão associados diretamente ao fato de “este” vírus específico estar contagiando “esta humanidade”, a “nossa humanidade”.  Em outras palavras, somos nós, a nossa maneira de viver, a materialização espácio-temporal que nos identifica, a outra face dessa mesma moeda e, portanto, trata-se de uma conjugação de fatores que só marginalmente são aleatórios, mas absolutamente efetivos. 
O problema é: se os fatores associados ao modelo de capitalismo que construímos é fator determinante para que a pandemia tome as proporções que hoje reconhecemos, nada diz que o controle sobre o vírus nos levará, necessariamente, a um outro modelo de capitalismo ou mesmo ao seu final. Por quê? Pela simples razão de que as transformações sociais ensejam sempre muito mais tempo que o desejo de qualquer um de nós, pelo fato de que a vida que nos foi “roubada” pela pandemia é, de fato, a vida que aprendemos e sabemos viver, pelo fato de que o recolhimento que hoje vivemos criou mais um espírito de auto comiseração que, propriamente, uma nova proposta de sociedade. 
Afirmar que a União Europeia vai se desmontar é tão aleatório quanto imaginar que o capitalismo vai acabar ou que, de fato, o Estado Nacional vai se fortalecer e vai criar mecanismos de produção mais próximos da auto suficiência, que o mercado internacional vai arrefecer, que o uso de combustíveis fósseis será dispensado, que teremos uma sociedade agora comandada por uma mistura entre o keynesianismo e o neo liberalismo e assim por diante. Cada proposição desse tipo está muito mais vinculada aos nossos medos ou desejos que, propriamente, ao conjunto de dados que dispomos para analisar o mundo atual e suas perspectivas. 
Já vivemos revoluções suficientes para saber o quanto elas aceleram as mudanças e, ao mesmo tempo, o quanto exacerbam o reacionarismo com todos os matizes de suas resistências.  As revoluções, mais que necessárias (de fato, sempre latentes no interior das contradições que estruturam qualquer sociedade), jamais nos indicam com clareza que e quais resultados nos trarão. Temos de enfrentá-las, criá-las, estimulá-las, mas algumas delas não passarão, num primeiro momento, de vitórias de Pirro, para, quem sabe (?), mais adiante, nos mostrar quais os caminhos que devemos trilhar para avançar. 
Dois pontos ainda, antes de terminar:
Retomando o velório que inicia esse texto e que serve de parábola para identificar, na nossa experiência individual, o quanto a tragédia expressa pela morte de um ser querido, sempre pranteada de diferentes maneiras, provocará diferentes resultados em cada um dos que permanecem vivos, e que, muitas vezes, o desespero geral esconde o alívio de muitos e a ausência geral de qualquer perspectiva de outros tantos. Este velório que vivemos todos, deverá, sempre, ser visto como uma experiência de radicalidade, mergulhada profundamente na maneira que construímos nossa cotidianidade, com a qual poderemos aprender (e, nesse contexto, compreender) quem, de fato, será enterrado e quem, e com que pressa, abandonará o cemitério para voltar ao que a excepcionalidade desses dias nos havia obrigado a abandonar.
Por outro lado, nesse quadro, vale considerar que mais que exacerbar este ou aquele comportamento aparente, é preciso construir propostas, mais que propagar desejos, é preciso pensar em formas específicas de reunir e definir a realização genérica da diferencialidade que nos caracteriza enquanto uma proposta de sociedade que seja compreensível e se torne o desejo de muitos. Mais que previsões precisamos de proposições. O inimigo não está fora de nós. O inimigo somos nós mesmos e precisamos conversar sobre isso. É por isso que categorias como modo de produção, classe social, alienação e tantas outras mais estão nas raízes dos nossos embates. Mais que bater panelas, bater palmas, xingar o bolsonarismo (se é que isso existe), ou assinar manifestos pela internet, é preciso reunir pessoas, conversar sobre nós e sobre o que queremos, nos organizar enquanto sem terra, sem fábrica, sem emprego, sem perspectiva, sem desejo e, portanto, sem projeto. Mais que falar bem do comunismo ou do socialismo (deixemos os conceitos para outro dia) é preciso imaginar (ou, até mesmo, criar) o que são, explicitar o que há de comum na nossa diferencialidade. Quem sabe assim, tal como esse pequeno texto, nossa prática política ultrapasse o simples sentido de fazer público nossos desejos, como se fôssemos profetas com algum dom especial de prever esse tal de futuro e continuássemos a, paciente e radicalmente, a construí-lo. 





quinta-feira, 9 de abril de 2020

Crônica em torno do Corona vírus

Fui capturado pelo corona vírus. Não sei se nesse momento ele está presente e ativo em meu corpo e vai me derrubar em alguns dias, ou se, pelo contrário, ainda não foi incorporado ou, agora na melhor das hipóteses, ele já passou por aqui e foi devidamente combatido pelo meu sistema imunológico e, pelo menos por enquanto, já conquistei minha imunidade. Não é a isso que chamo de captura. Trata-se do fato de que, no momento, ainda preservo as chaves de minha casa, mas estou trancado dentro dela. Tenho medo do que possa estar do lado de fora. Algo como se estivesse vivendo os velhos (porque já se tornaram velhos) filmes sobre a presença de seres malignos se deslocando pelas ruas, sem culpa ou pré julgamento, simplesmente atacando os que ainda estão no patamar hoje aceito de normalidade e, assim, querendo transformar a todos em uma única espécie. Fui capturado porque nesses tempos ele me possui, toma conta de minha mente porque toma conta de meus medos. O medo de ser infectado, o medo de infectar, o medo do outro que pode me transformar em vítima ou, o que não é o mesmo mas é igual, pode se transformar em minha vítima. E assim, inconsciente de minha real situação evito abandonar a prisão, considerando que, paradoxalmente, ela é o único lugar livre de que disponho.
A cidade em que vivo,  geralmente buliçosa, agora mergulha no silêncio, para irromper, em torno das 8 horas da noite, num festival de aplausos que, como se produzido pela mesma mágica que move a todos a comemorar que ainda estão vivos e dar as devidas graças aos heróis do sistema de saúde público e pública, também a seguir as janelas se fecham, as luzes se apagam e o silêncio volta a dominar por mais 24 horas. 
Acho que enlouqueço. Me tornei uma pessoa mórbida que acompanha, também a cada 24 horas, quantos foram os que morreram e, nesses últimos dias, já estou comemorando que as centenas de mortos da última contagem é menor que da penúltima. Converso com amigos ou com aqueles que comigo compartilham da prisão e falamos do que acontece lá fora. Onde é o lá fora? As ruas, os parques fechados, os supermercados perigosos e as farmácias onde só se entra um de cada vez. 
Um metro é a distância mínima: a regra básica da sobrevivência. Não importa quem seja, considerando que os zumbis desses últimos meses não rastejam, não grunhem, não têm seus rostos e mãos decompostos como nos filmes. Meu inimigo potencial sorri, anda normalmente e, vez ou outra, cada vez mais vez que outra, se cobre com uma máscara. Não sei ao certo se seu dilema é não me infectar ou se ele desconfia de minha respiração ou, ainda, se, como eu, ele não tem a menor ideia de como está participando desse ciclo de autodefesa e autopiedade.
Hoje vi um artigo do El País, na sua versão brasileira, prognosticando que o vírus será vencido pela ciência e não pela religião e fiquei imaginando que, se o colunista fosse um pouco mais religioso, diria: com a graça de Deus. 
Em dois outros artigos, presentes também na versão espanhola, um articulista se pergunta se chegou a hora de uma constituição global, enquanto um filósofo chinês, reticente ao partido comunista de seu país, afirma que o capitalismo chegou ao fim. Fico a pensar se tudo isso não se associa, de uma maneira ou de outra, ao fato de que nas crises sempre surgem profetas, mais ou menos auto proclamados, de todo tipo, assim como nosso Messias brasileiro profetizando que o vírus será expulso do Brasil. 
A ambiguidade dos discursos, em nome da ciência ou da religiosidade (também há aqueles que se auto proclamam como ciência espiritual), parece ser o carro chefe do desespero e de seus gritadores, agitadores ou seja como seja que se possa identifica-los. 
É mergulhado em tais pensamentos que, daqui de uma das janelas de minha prisão (gradeadas para que os ladrões não entrem e não para que eu não saia, pois, no final das contas, aqui a violência é mínima mas o “seguro morreu de velho”), volto a observar o silêncio das ruas que, desde que as conheço, sempre se mostraram ruidosas (poucos carros em relação às grandes avenidas, mas ponto de encontro dos moradores do bairro) e sei que o caminho que percorremos em nossos retiros não depende somente da ciência (seja lá o que isso signifique) nem da religião, mas da mistura entre o medo ao desconhecido e à morte e o reconhecimento de não se estar só apesar do isolamento. Ontem também fui à janela gradeada bater palmas e. em meio aos aplausos das 8 da noite, um carro da policia passava com as sirenes ligadas em sinal de agradecimento e os aplausos se tornaram mais fortes, mais audíveis. 
Há, evidentemente, algo em tudo isso que vai para além de se acreditar na ciência, de se imaginar como os povos e seus governos e suas elites vão se comportar ao final da tragédia. 
Entre outros pensares, fico acompanhando Trump e seus assaltos descarados em nome da “américa para os americanos”, imaginando que tal postura poderá ser uma alavanca fundamental para uma segunda vitória nas próximas eleições e, mais ainda, me perguntando se a saída de Bernie Sanders da disputa não estaria associada à compreensão de que Trump vai continuar na presidência dos EUA e, portanto, permanecer candidato é uma batalha perdida tanto dentro do partido democrata quanto em relação ao eleitorado americano. Trata-se de algo muito próximo da lógica da família mafiosa onde o capo assim permanece porque mata e rouba em nome da sobrevivência dos seus. Nada disso, nem mesmo o Boris Johnson na UTI, nem os milhares de mortos e discursos desconexos, me parece, tendem a derrubar o capitalismo enquanto modo de produção e reprodução da vida. É preciso, de fato, que projetos políticos sejam disputados e façam sentido para os povos, e o que vejo é o fortalecimento do poder de Estado no seu formato mais próximo da tradição fascista, justificado pelo objetivo geral de salvar nossas vidas e controlar o comportamento dos reticentes, algo que a anarquia e o individualismo libertário (ou, no jargão dos neologismos, o tal do neoliberalismo) jamais conseguiria. Já se fala nessa tal Constituição Planetária, que quase certamente nos levaria a algo próximo do Estado Único. A ficção científica de caráter catastrófico vai se tornando proposta política salvacionista. 
Uma outra reflexão já começa a tomar conta do imaginário: o questionamento quanto ao volume e velocidade com que as estruturas produtivas estimulam o consumo e aceleram o processo geral de acumulação ampliada do capital (o jargão é conhecido). Trata-se, portanto, não exatamente do Estado Mínimo, mas do Consumo Mínimo. Algo que permita à humanidade sobreviver sem destruir as condições básicas de sua sobrevivência e, melhor que isso, sobreviver enquanto humanidade e não em base aos processos de exclusão criados pelo desigual acesso ao mercado e, obviamente, à distribuição de renda. Nossa salvação, portanto, não estaria na retomada do crescimento dos PIBs, mas, justamente, no seu inverso, associada a uma outra maneira de se acessar (participar de) o processo produtivo (redefinir a divisão social do trabalho) e as diferentes maneiras pelas quais se tem acesso ao produto geral socialmente criado. Em poucas palavras, tem gente imaginando que a crise sanitária se desdobrará na redefinição das bases sobre as quais se sustenta a sociedade capitalista. 
Bem... que dizer? Talvez que a prisão seja o melhor lugar para se sonhar com a liberdade? Bom... fico aqui, com as chaves de casa na mão e a decisão mais que firme de não abrir a porta e sair despreocupado pelas ruas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Problemas de memória e algumas reflexões um tanto desesperadas sobre a escola



Gosto de lembrar de meus tempos de menino, jogando bola na rua, pilotando meu carrinho de rolimã, me equilibrando em um muro para manter a pipa no ar (chamávamos aquela maravilha de maranhão) ou, carregando minha caixinha nas costas, vagueando pela rua da Abolição e olhando para os sapatos dos adultos e ver se estavam sujos e necessitavam dos meus serviços (não creio que me dei bem nesse negócio, ou que em algum momento de minha vida tenha me dado bem como empreendedor). A memória é algo fascinante e, seletivamente, dependendo da fase que estamos vivendo, nos permite mergulhar no mais profundo do auto elogio ou da auto comiseração. 
Procurando fundamentos para o que quero escrever aqui, fui buscar na memória algumas referências em busca de compreender o como o Brasil dos anos 50, 60 e 70, realizou seu brutal processo de transformação e, entre outros fenômenos, me lembrei de como fomos capazes de levar ao limite estatístico os processos de migração para o Sudeste daqueles que não conseguiram suportar o trinômio latifúndio, seca e miséria e, a seguir, o avanço sobre o chamado Centro Oeste, num processo de eliminação das bases produtivas ali existentes e a expansão de novos formatos latifundistas, com a produção da soja, da carne bovina e outros muitos movimentos de destruição geral do ecossistema do cerrado e das bordas da floresta amazônica e do pantanal. 
Enquanto isso, as cidades do chamado Sudeste, Sul e da zona da mata Nordestina, foram recebendo suas camadas de asfalto, seus edifícios monumentais, sua carga de automóveis, postes e fios elétricos, produtos e mais produtos para um mercado sedento e insaciável de tudo o que tinha a marca do way of life europeu ou dos EUA. 
Foi nesse ínterim que entrei na pré escola para, logo depois, iniciar o primário. Mudamos de casa e tive de mudar de escola e a honra de participar da última turma de uma que, em sua única sala de aula, coabitavam diferentes níveis sob a batuta de uma professora, aquela que se tornaria, logo de saída, no modelo que eu seguiria na minha vida de professor. 
Terminei o quarto ano e fiz meu exame de admissão ao ginásio (algo que poucos anos depois também acabaria) e, mau classificado, fui estudar no noturno. Posso considerar, igualmente, que participei de uma das últimas turmas do tal do ginásio e, certamente, minha classe foi a última a ter de estudar latim. Era 1964 e os dias se arrastavam. Os militares prometiam reformas e o primário se juntou com o ginásio, o exame de admissão virou coisa do passado, chegou a licenciatura curta e alguém imaginou que História e Geografia poderiam ser ministradas por quem não tinha formação suficiente em nenhuma das duas áreas, nascendo assim os Estudos Sociais. De outro lado, química, física e biologia se materializavam com o nome de Ciências. A escola serviu, neste caso, para a consolidação da ideia de que História e Geografia não são ciências, que ambas tratam exclusivamente de questões sociais e, com tudo isso, foi-se criando uma espécie de limbo epistemológico, onde a ideia de ciência se resumiu a tudo o que, de uma maneira ou de outra, poderia ser matematizado. Os militares trouxeram consigo uma escola que se movimentava em direção ao resumo e assim sua expansão e consolidação foi demonstrando o que estava no ideário do movimento geral de transformação de nosso país. Não é preciso muito esforço para identificar no papel da instituição escolar o retrato sintético do que se costuma chamar de cultura. 
Quem duvida que a oferta de vagas nas escolas brasileiras se expandiu exponencialmente, ampliando-se para muito além do crescimento demográfico? Quem duvida que a redução dos custos na formação de professores permitiu ampliar o número desses profissionais? Quem não se deu conta que parte considerável desses novos professores, vivendo um processo contínuo de descrédito, de redução da capacidade de consumo, de conjugação entre a pressão dos processos migratórios e a possibilidade de se ter um emprego urbano, foram os personagens responsáveis pelo processo sistemático de consolidação da cultura urbano-industrial, sendo, em grande maioria, eles mesmos figuras distantes de possuírem os saberes que deveriam ensinar?  Quem duvida que a transformação do saber escolar, de um dilema de caráter epistemológico em dilema de caráter pedagógico, tenha feito parte desse ideário reducionista de construção do que Ruy Moreira chamou de urbe sem urbanidade? Afinal, o que nos levou a crer que é mais importante discutir o “como se ensina” que “o que se ensina”? No final desses questionamentos, de caráter iminentemente retórico, fica mais uma pergunta: quando foi que esse movimento reducionista parou e, se isso ocorreu, o que está em jogo com a presença medíocre das chamadas áreas do saber, algo pomposo e vazio de fundamento, que agora vai se transformar nos livros didáticos comprados pelo FNDE e, como sempre, ponto de partida para a organização de grande parte das escolas privadas? E assim, as chamadas elites terão de engolir o veneno que foi criado para as populações mais pobres, mas, sem dúvida, o farão com mais pompa.
Vale considerar que muitos são os Olavos de Carvalho que constroem cotidianamente nosso ideário de sociedade. Esse herói de triste figura, fácil de criticar em função do alarde que faz de sua própria mediocridade, tem muitos detratores, e é nesse grupo, me parece, que se reproduz sub-repticiamente os fundamentos gerais da mesma ideologia ou, o que é mais perigoso, de sua ausência aparente.
Voltemos. Estávamos observando que a partir dos anos 60 (é preciso dizer que estou me referindo ao século XX?) nossas cidades cresceram aceleradamente. Do algo em torno de 50% de população rural em meados do século passado, nos dirigimos à assustadora cifra de quase 90% de população urbana nesse final de década. Isso sem contar que nos mesmos anos 50 beirávamos os 50 milhões de brasileiros e que agora somos aproximadamente 200 milhões. 
Assim, enquanto as cidades incham e o asfalto representa a chegada do que se considera civilizado, os cinemas desaparecem, os teatros não se multiplicam, os terrenos baldios se tornam centros comerciais, parques e praças parecem investimento sem retorno, as ruas se tornam perigosas, brincar é assistir televisão ou jogar vídeo games, a classe média se esconde em condomínios fechados, se desenvolve o processo de escurecer os vidros dos automóveis e, voltando ao ponto, as escolas representam uma das poucas, senão a única, maneiras de acesso à cultura, por vezes associada ao processo de ascensão social, por vezes com o objetivo de tirar o jovem da rua, porque a rua não é o lugar do público, é o lugar da educação sem controle, é o lugar do vício, é o lugar onde nossos filhos não deveriam estar.
E assim fomos mudando... algumas dessas transformações foram radicais e, dentre elas está a maneira pela qual hoje se realiza a Geografia do processo de produção e reprodução da vida em nosso país, isto é, houve uma verdadeira revolução de caráter fascista na significação e ressignificação dos lugares. A transição que tentou por fim à sociedade escravista do século XIX, o fez enquanto um golpe de elites, indo em busca da constituição do último bastião da miséria na forma do trabalho assalariado. Outras mudanças tiveram mais o sentido de reformas no tipo e na cor das maquiagens que, propriamente, revoluções. Assim, se escolarizar é preciso, tal pressuposto em nada se parece com a socialização do acesso aos diferentes formatos da produção e reprodução da cultura. O que nos marcou foi o isolamento, a ausência, o resumo e a impossibilidade de se propor um projeto alternativo.
No limite, e nos dias de hoje, nossas elites nos presenteiam com uma Base Nacional Comum Curricular, dando continuidade ao projeto de sociedade que já estava em pauta quando se inventou os Estudos Sociais e, por fim, alguns de nossos autores já se auto censuram com medo dos Olavos de Carvalho avaliadores do Ministério de Educação e, quando não é o caso, fica o terreno escorregadio para algumas editoras, que se auto justificam com os mesmos medos quando exercem o poder de censurar antes mesmo que o Estado o faça. Sabemos quando a violência se institucionaliza quando obedecemos sem que ninguém precise dar ou receber qualquer ordem... o que talvez tenhamos perdido do horizonte é que nos comportamos assim, levando em conta os projetos que se iniciaram nos anos 60, desde há décadas. Nessas revoluções todas, não só perdoamos os assassinos e torturadores, mas lhes demos nossa benção em nome de garantir a democracia.  
Talvez seja por isso que vejo com certo romantismo os tempos em que ainda se permitia que uma criança andasse pelas ruas e, vez ou outra, eu saia com meu pai para panfletar a candidatura do Marechal Lott ou escutar, com algum fascínio e pouco anos depois, o João Goulart explicar aos trabalhadores o que seriam as reformas de base. 
Caros amigos, é preciso ir além da crítica (ou, em outras palavras, do ordenamento criterioso do pensamento), é preciso construir projetos que possam fazer sentido para as pessoas e, quando pensamos na escola, tal chamamento é de uma urgência brutal. É preciso que a escola abandone esse projeto reducionista de ensinar prioritariamente gramática  e rudimentos de matemática. É preciso que as tornemos um semeadouro de grupos de teatro, música, pintura, literatura e cinema. É preciso que saiamos às ruas e que transformemos o observado em discursos na forma de poemas, de contos, de mapas, de fotografias, de leituras históricas e geográficas sobre o mundo. É preciso que a gramática ou a matemática tenham mais sentido que o simples produtivismo e a preparação para o trabalho assalariado. Tais conhecimentos devem se tornar o que de fato são: ferramentas que utilizamos para organizar nosso discurso sobre o mundo que conhecemos e que isso nos permita avançar sobre aquele que ainda não conhecemos. Neste momento, enfim, é preciso que as escolas se dirijam às ruas, para que, dentro de algumas décadas, as formas de referência e produtividade cultural se multipliquem e a escola possa ser, outra vez, somente mais um, entre tantos, lugar da cultura. 
Enfim, precisamos conversar sobre isso, sem nos perdermos no oficialismo das reformas curriculares. Trata-se de colocar a escola sob a tutela dos movimentos populares e, portanto, entregar a formação de nossos filhos a nós mesmos e não ao Estado. Trata-se de uma luta política que envolve construir projetos, definir objetivos, organizar saberes e compreender que à medida que nos apropriamos dos conhecimentos disponíveis, acessamos as estruturas epistemológicas que os constroem e, portanto, passamos a pertencer, em diferentes escalas, à civilização que nos foi legada e na qual temos a condição de construir sua própria superação, construindo outras cidades, outros campos, outros trabalhos, outros saberes, outros amores e, em meio a isso, outras escolas.