terça-feira, 20 de setembro de 2016

Era uma vez...

Era uma vez um reino chamado Tão Tão Perto. Não se trata, portanto, de um reino governado por ogros simpáticos e humanos detestáveis. Claro! tem lá suas diferenças em relação aos reinos normais. Nele, como sempre acontece, tinha (ou tem?) um rei e uma rainha, mas, diferentemente do que se imagina no senso comum dos humanos detestáveis, eles se davam tão bem que até pareciam um casal de plebeus. 
Lá no reino do Tão Tão Perto, rei e rainha dormiam e ficavam acordados nos mesmos aposentos, se divertiam com bastante frequência e as damas de companhia gostavam de ficar com os ouvidos grudados na porta, para ouvi-la gemer e falar alguns palavrões enquanto atingia o orgasmo. 
Certo dia, no entanto, enquanto ela tomava seu banho matinal, e o Rei escutava-a cantar como de costume, as palavras cantadas obrigaram-no a fechar involuntariamente o semblante e mostrar-se preocupado com o que ouvia. 
Em meio ao barulho do jato d’água ela cantava, afinada e melodiosamente:

Hoje eu sonhei contigo 
Tanta desdita, amor 
Nem te digo 
Tanto castigo 
Que eu tava aflita de te contar 
Foi um sonho medonho
Desses que às vezes a gente sonha
E baba na fronha 
E se urina toda 
E quer sufocar

Nossa! que se será que tinha acontecido??? Por que aquela música assim, sem mais nem menos, iniciando aquela manhã?

Meu amor 
Vi chegando um trem do candango 
Formando um bando 
Mas que era um bando de orangotango 
Pra te pegar 
Vinha nego humilhado 
Vinha morto-vivo 
Vinha flagelado 
De tudo que é lado 
Vinha um bom motivo 
Pra te esfolar 

A cada estrofe o Rei arregalava os olhos e rapidamente, computador portátil em punho, procurou informações sobre aquela música que, martelando seus ouvidos, prenunciava uma profunda crise conjugal. 

Quanto mais tu corria 
Mais tu ficava 
Mais atolava 
Mais te sujava 
Amor, tu fedia 
Empestava o ar 
Tu, que foi tão valente 
Chorou pra gente 
Pediu piedade 
E olha que maldade 
Me deu vontade 
De gargalhar 

Computador ligado, internet conectada, google disponibilizado e o Rei, rapidamente, digitou um ou dois versos daquela que poderia ser a música final de seu já longo e feliz casamento e, certamente, a expressão mais acabada de que se iniciava uma terrível crise em seu pacífico reino.

Ao pé da ribanceira 
Acabou-se a liça 
E escarrei-te inteira 
A tua carniça 
E tinha justiça 
Nesse escarrar 
Te rasgamo a carcaça 
Descemo a ripa 
Viramo as tripa 
Comemo os ovo 
Ai, e aquele povo 
Pôs-se a cantar

Enquanto a cantoria continuava o semblante do Rei se desanuviava, um sorriso malicioso tomou conta de seus lábios, achou que estava tendo uma espécie de ereção não muito comum àquela hora do dia e, tirando o pijama, foi sorrateiramente entrando no banheiro…

Foi um sonho medonho 
Desses que às vezes a gente sonha 
E baba na fronha 
E se urina toda 
E já não tem paz 
Pois eu sonhei contigo 
E caí da cama 
Ai, amor, não briga 
Ai, diz que me ama 
E eu não sonho mais 

A rainha, surpresa com aquela fogosidade matinal, depois de gemer escandalosamente e reiniciar seu banho, olhou para ele e perguntou: de onde vem tanta energia logo cedo?
Do seu cantar, respondeu o Rei.
A rainha mostrou-se curiosa e, duvidando do marido como somente as esposas podem fazer, deu a ordem fatal: explique-se!!!
Ele, pacientemente, como um bom marido, respondeu:
Primeiro, ter uma rainha que conheça Chico Buarque é se casar com alguém que gosta de boa música;
Segundo, ouvir ela cantando uma música que foi tema do filme República dos Cafajestes, me faz lembrar que Tão Tão Perto é um reino e, portanto, você não estava cantando e pensando em mim;
E terceiro, o que me fez vir aqui e te bolinar, foi imaginar o que aconteceria se a esposa do atual presidente golpista do Brasil cantasse isso para ele… Não haveria engano quanto às intenções dela, não é mesmo?

A Rainha sorriu e beijou o marido na bochecha, soltando aquela frase venenosa que só as mulheres conseguem: ela nunca ouviu falar de Chico Buarque….