quarta-feira, 13 de maio de 2020

Sobre velórios, pandemias e profecias.


Você já foi a um velório? Poucos são os que experimentam a vida sem que, em algum momento, se defronte com a morte de alguém relativamente próximo. Diria que, para isso, teríamos de observar somente aqueles seres humanos que vivem relativamente pouco e, por isso mesmo, também pouco experimentam o que significa ter alguém “relativamente próximo”. Nos dias de hoje, são exceção, e deixemos as exceções de lado. 
No momento estou tentando me lembrar das várias experiências que tive nesse sentido. Meus pais, avós, tios, cunhados, sogros, pais de amigos.... e, sem dúvida, um a um, tiveram no rito que sucede a morte a capacidade de mobilizar um pequeno grupo de pessoas, algumas para uma rápida passagem, outras que chegam já no momento do enterro, outras, essas poucas, chegam antes do corpo e só se vão quando não há mais nada que fazer. 
Nos dias de hoje, esses ritos, principalmente nas cidades grandes, já não ocorrem na sala principal das casas. Há lugares especiais para isso e ali (tal como antigamente) se cruzam o choro compulsivo com a conversa em voz baixa (há exceções, como sempre). De qualquer maneira, é um dia diferente para todos, mas, e é isso que me importa, trata-se de um dia desigualmente diferente para cada um. A tragédia, de alguma maneira nos une, mas nos une a partir de relações que não são as mesmas. Um mesmo chamado, se é que se pode usar tal expressão, pode nos levar a ter comportamentos semelhantes por um tempo, mas, considerando que o ponto de partida de cada um não é o mesmo, os desdobramentos também não o serão. 
Estou escrevendo isso por duas razões que se colocaram a partir de estímulos muito diferentes. A primeira delas é o fato de já me encontrar há mais de dois meses relativamente confinado, com direito a ir ao mercado, à farmácia, ao médico e, agora, a passear em horários e lugares determinados, desde que devidamente mascarado, preservando os dois metros regulamentares de distância social e assim por diante. A segunda foi a leitura que acabei de fazer de um artigo de Marilia Pacheco Fiorillo intitulado “A Insubmissão do Real” (https://aterraeredonda.com.br/a-insubmissao-do-real/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-insubmissao-do-real), o qual, do muito que tenho lido sobre a pandemia e suas consequências, diria que está colocado na lista das reflexões mais sensatas dos últimos dias e, por isso mesmo, fica aqui o convite a que a leiam. 
Acontece, por sua vez, que esses dois pontos de inflexão se associam ao meu incômodo em relação à quantidade de profecias que se desbordaram quanto ao futuro da humanidade e o fato de, grande parte delas, realçando este ou aquele aspecto (escolhido com muito critério) do interior da tragédia, perderem de vista que a generalização aparente dos comportamentos humanos tem como ponto de partida a contradição que se impõe entre uma tragédia e a diversidade infinita de variáveis sobre a qual se materializa.
Longe de mim, vale lembrar, afirmar que os acontecimentos recentes que pairam, definem, extrapolam, relativizam e tantas outras coisas mais, a condição de ser do humano, nos impeça de refletir, ponderar, expressar nossa perplexidade e, por que não (?), fazer uma ou outra profecia. Mas, como afirmou Fiorillo “Uma realidade totalmente desconhecida há poucos meses, total incógnita até o momento, pede certa paciência, inclusive do conceito.” E esta paciência, diria eu, sendo algo que se aproxima inexoravelmente da prudência, se associa ao fato de, ao terminar a pandemia seremos pessoas que, de diferentes pontos de vista, em diferentes lugares do mundo, sob condições econômicas, culturais, climáticas, familiares e individuais diferentes, nada diz que isso resultará em qualquer tipo de unanimidade. Por isso a prudência, pois, é preciso lembrar, mais que a simples previsão de como será a humanidade, é o que somos no presente a matéria prima do que seremos no futuro. 
O fundamental, nesse momento, é que a maior parte de nós quer voltar ao que éramos. Não são todos, evidentemente. Alguns estão especulando, manipulando, sobrevivendo, ampliando riquezas e poderes em meio à miséria geral. A maioria, no entanto, vai tombando pelo caminho do desemprego, da fome, do isolamento, da solidão, do medo e, certamente já sendo contado aos milhares, muitos já morreram e outros muitos ainda serão contados como vítimas dessa pandemia. 
Vale considerar aqui dois fatos que se reúnem: 
1.     o vírus, só aparentemente, é algo externo ao humano, um inimigo a ser combatido como se combate um alienígena;
2.     Sua letalidade, abrangência e o fato de ter se tornado o vetor do desmonte social que experimentamos, no entanto, estão associados diretamente ao fato de “este” vírus específico estar contagiando “esta humanidade”, a “nossa humanidade”.  Em outras palavras, somos nós, a nossa maneira de viver, a materialização espácio-temporal que nos identifica, a outra face dessa mesma moeda e, portanto, trata-se de uma conjugação de fatores que só marginalmente são aleatórios, mas absolutamente efetivos. 
O problema é: se os fatores associados ao modelo de capitalismo que construímos é fator determinante para que a pandemia tome as proporções que hoje reconhecemos, nada diz que o controle sobre o vírus nos levará, necessariamente, a um outro modelo de capitalismo ou mesmo ao seu final. Por quê? Pela simples razão de que as transformações sociais ensejam sempre muito mais tempo que o desejo de qualquer um de nós, pelo fato de que a vida que nos foi “roubada” pela pandemia é, de fato, a vida que aprendemos e sabemos viver, pelo fato de que o recolhimento que hoje vivemos criou mais um espírito de auto comiseração que, propriamente, uma nova proposta de sociedade. 
Afirmar que a União Europeia vai se desmontar é tão aleatório quanto imaginar que o capitalismo vai acabar ou que, de fato, o Estado Nacional vai se fortalecer e vai criar mecanismos de produção mais próximos da auto suficiência, que o mercado internacional vai arrefecer, que o uso de combustíveis fósseis será dispensado, que teremos uma sociedade agora comandada por uma mistura entre o keynesianismo e o neo liberalismo e assim por diante. Cada proposição desse tipo está muito mais vinculada aos nossos medos ou desejos que, propriamente, ao conjunto de dados que dispomos para analisar o mundo atual e suas perspectivas. 
Já vivemos revoluções suficientes para saber o quanto elas aceleram as mudanças e, ao mesmo tempo, o quanto exacerbam o reacionarismo com todos os matizes de suas resistências.  As revoluções, mais que necessárias (de fato, sempre latentes no interior das contradições que estruturam qualquer sociedade), jamais nos indicam com clareza que e quais resultados nos trarão. Temos de enfrentá-las, criá-las, estimulá-las, mas algumas delas não passarão, num primeiro momento, de vitórias de Pirro, para, quem sabe (?), mais adiante, nos mostrar quais os caminhos que devemos trilhar para avançar. 
Dois pontos ainda, antes de terminar:
Retomando o velório que inicia esse texto e que serve de parábola para identificar, na nossa experiência individual, o quanto a tragédia expressa pela morte de um ser querido, sempre pranteada de diferentes maneiras, provocará diferentes resultados em cada um dos que permanecem vivos, e que, muitas vezes, o desespero geral esconde o alívio de muitos e a ausência geral de qualquer perspectiva de outros tantos. Este velório que vivemos todos, deverá, sempre, ser visto como uma experiência de radicalidade, mergulhada profundamente na maneira que construímos nossa cotidianidade, com a qual poderemos aprender (e, nesse contexto, compreender) quem, de fato, será enterrado e quem, e com que pressa, abandonará o cemitério para voltar ao que a excepcionalidade desses dias nos havia obrigado a abandonar.
Por outro lado, nesse quadro, vale considerar que mais que exacerbar este ou aquele comportamento aparente, é preciso construir propostas, mais que propagar desejos, é preciso pensar em formas específicas de reunir e definir a realização genérica da diferencialidade que nos caracteriza enquanto uma proposta de sociedade que seja compreensível e se torne o desejo de muitos. Mais que previsões precisamos de proposições. O inimigo não está fora de nós. O inimigo somos nós mesmos e precisamos conversar sobre isso. É por isso que categorias como modo de produção, classe social, alienação e tantas outras mais estão nas raízes dos nossos embates. Mais que bater panelas, bater palmas, xingar o bolsonarismo (se é que isso existe), ou assinar manifestos pela internet, é preciso reunir pessoas, conversar sobre nós e sobre o que queremos, nos organizar enquanto sem terra, sem fábrica, sem emprego, sem perspectiva, sem desejo e, portanto, sem projeto. Mais que falar bem do comunismo ou do socialismo (deixemos os conceitos para outro dia) é preciso imaginar (ou, até mesmo, criar) o que são, explicitar o que há de comum na nossa diferencialidade. Quem sabe assim, tal como esse pequeno texto, nossa prática política ultrapasse o simples sentido de fazer público nossos desejos, como se fôssemos profetas com algum dom especial de prever esse tal de futuro e continuássemos a, paciente e radicalmente, a construí-lo.