quinta-feira, 18 de junho de 2020

Raça e Racismo, alguns apontamentos sobre uma farsa que se realiza como tragédia

Fico a imaginar que um ato fundamental da política antirracista é reconhecer que, definitivamente, Raça não existe como categoria identificadora das diferenças entre seres humanos e a literatura no campo da biologia já parece ter esgotado o assunto[1]. Dessa maneira, é preciso afirmar que raça é uma invenção de racistas e que, por serem representantes das elites, por fazerem sentido do ponto de vista de quem quer se manter no controle, reproduz-se reproduzindo-se enquanto ideologia de muitos dos “racializados” em seus diferentes formatos. Racistas e racializados se retroalimentam e não importa se o outro é árabe ou judeu, se é o branco do ponto de vista do norte americano ou o branco do ponto de vista do latino europeu (por incrível que possa parecer, ser latino é uma condição originariamente europeia) ou, mesmo, se se é o negro que pertence às elites que se mantêm no poder dos países africanos ao sul do Saara (o que nos faz lembrar que nas sociedades de maioria negra o racismo permanece, só que moldado com outros matizes, na sua maioria de caráter étnico). 
O racismo não é um problema somente do racista, da mesma maneira que o escravismo não é um problema somente do senhor de escravos. Podemos afirmar que tanto o senhor de escravos quanto o racista, independentemente de ambos se confundirem ou não, são os principais responsáveis pelo desenrolar de toda essa História, pois, na melhor forma da novela policial, vale sempre perguntar: “a quem interessa o crime?”. Mas, da mesma maneira que festejamos o emprego novo, sem levarmos em conta que acabamos de nos ajustar à forma geral de exploração do nosso trabalho, vendendo-o como força de trabalho, igualmente a violência do discurso racista se realiza quando aquele que estigmatiza convence o estigmatizado da justeza de seu discurso e de um amplo conjunto de ações que garantem a continuidade dos modelos sociais de exploração. 
Como parte dessa luta, é preciso esvaziar o racismo de seu significado e, para tanto, é preciso esvaziar o discurso do racista de qualquer significado plausível. Seria isso suficiente? Evidentemente que não. Porque o discurso se realiza em uma quase infinita variedade de formatos, tais como a matança dos Tutsis, dos Armênios, dos Judeus pelos nazistas e dos Palestinos pelos Judeus, dos comunistas indonésios (500.000 mortos sobre os quais pouco ou nada se fala) ou o caso dos Rohingya em Myanmar, ou dos negros assassinados/marginalizados nos EUA (onde se misturam os militantes da Ku Klux Klan e uma massa disforme de policiais – muitos deles igualmente negros), e em toda a América Latina, das mulheres de todo mundo assassinadas e subordinadas em seus trabalhos (além das práticas relativamente localizadas de mutilação genital, casamento forçado de adolescentes, estupros, tráfico humano para prostituição etc.), das diferentes opções sexuais reduzidas a um problema de gênero, além dos Árabes tratados como terroristas ou inimigos dos EUA em qualquer lugar do mundo (a presença de tropas americanas e europeias no chamado Oriente Médio é só um dos sintomas dessa doença) e assim por diante, pois, no final das contas, não há como dar conta da lista que poderia identificar todas as formas de preconceito e o formato que tomam suas violências. 
O racismo é só uma delas e é a justificativa ideológica para a eliminação/subordinação do outro e, pela mesma razão, Raça não é uma categoria que pode ser utilizada na luta contra esse mal. Não posso lutar contra o racismo porque sou negro e imaginar que tal violência existe somente ou prioritariamente contra negros e o mesmo deve ser considerado se faço parte ou me identifico enquanto índio, judeu ou árabe ou com qualquer outro tipo de identificador. Pertencer a tais grupos não torna minha luta nem mais nem menos legítima. É preciso compreender que a luta contra o racismo se deve ao fato de raça não existir e não o de reafirmar que raça existe, que pertenço a alguma delas, mas nem por isso sou inferior.  O direito à diferença não pode ter no conceito de Raça seu fundamento identificador. Essa luta é contra o discurso e a atitude de parcelas das elites e dos que, mesmo não pertencendo a elas, acreditam e subordinam, porque são ou não subordinados, por tal discurso. Não se pode lutar contra a criminalização apriorística dos negros (ou quaisquer outras identidades, seja pela cor da pele, pela identidade ou opção sexual, pelo país de nascimento, pela crença religiosa etc.) afirmando que tudo resulta do fato das mãos genéricas dos  brancos (ou qualquer outra identidade generalizante atrás da qual se escondem os verdadeiros algozes) se encontrarem manchadas de sangue, ou, como ouvi certa vez: se não tens sangue negro nas veias, certamente o tens em vossas mãos, até porque, sem nenhuma dúvida, ser negro não me exime de ter sangue de algum outro negro em minhas mãos, em nome, inclusive, das formas de dominação que utilizam do racismo para manter o outro sob controle, isto é, naquele que é transformado em ser genérico para que se possa dominar e, da mesma maneira, no interior do processo em que alguns se transformam em ser genérico para se proteger. 
Há, de fato, uma condição a ser conquistada: a de que todos pertencemos a uma mesma raça, a raça humana. Para isso é preciso lutar contra as diferentes formas de opressão, sendo que essas, de forma sistemática, usam de indicadores/denunciadores superficiais para evidenciar quem manda e quem obedece, quem organiza as formas básicas de trabalho e se apropria do excedente (lucro) e, concomitantemente, do poder político, em contraposição de quem vende sua força de trabalho, mesmo que seja no formato do trabalho doméstico (que nem sempre é feminino), ou do lupen proletariado ou, mesmo, dos jovens americanos vindos das diferentes guerras e perambulando pelas ruas como mendigos com status de herói.   
Essa é a palavra de ordem: raça é invenção de racista. É preciso derrotá-los derrotando suas formas de opressão e, para tanto, faz parte da luta destruir o jogo simbólico que torna tudo isso algo aparentemente natural. Lutar contra o racismo é uma prática cotidiana que ainda durará séculos e é, igualmente, parte da luta pela invenção de uma nova sociedade e, nesse sentido, é preciso lutar contra todas as formas de preconceito, desde os mais arraigados nas nossas culturas como, por exemplo, os sexismos, os machismos, a nossa leitura em relação aos velhos, aos negros e aos índios, só para nos atermos aos exemplos brasileiros mais gritantes, bem como, no limite, ir em busca da superação de nossa condição de proletários.   


[1] Alguns minutos antes de publicar este texto neste blog li algo sobre racismo como mais um presente que nos deixou Saramago: https://elpais.com/cultura/2020/06/17/babelia/1592410098_611950.html