sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Problemas de memória e algumas reflexões um tanto desesperadas sobre a escola



Gosto de lembrar de meus tempos de menino, jogando bola na rua, pilotando meu carrinho de rolimã, me equilibrando em um muro para manter a pipa no ar (chamávamos aquela maravilha de maranhão) ou, carregando minha caixinha nas costas, vagueando pela rua da Abolição e olhando para os sapatos dos adultos e ver se estavam sujos e necessitavam dos meus serviços (não creio que me dei bem nesse negócio, ou que em algum momento de minha vida tenha me dado bem como empreendedor). A memória é algo fascinante e, seletivamente, dependendo da fase que estamos vivendo, nos permite mergulhar no mais profundo do auto elogio ou da auto comiseração. 
Procurando fundamentos para o que quero escrever aqui, fui buscar na memória algumas referências em busca de compreender o como o Brasil dos anos 50, 60 e 70, realizou seu brutal processo de transformação e, entre outros fenômenos, me lembrei de como fomos capazes de levar ao limite estatístico os processos de migração para o Sudeste daqueles que não conseguiram suportar o trinômio latifúndio, seca e miséria e, a seguir, o avanço sobre o chamado Centro Oeste, num processo de eliminação das bases produtivas ali existentes e a expansão de novos formatos latifundistas, com a produção da soja, da carne bovina e outros muitos movimentos de destruição geral do ecossistema do cerrado e das bordas da floresta amazônica e do pantanal. 
Enquanto isso, as cidades do chamado Sudeste, Sul e da zona da mata Nordestina, foram recebendo suas camadas de asfalto, seus edifícios monumentais, sua carga de automóveis, postes e fios elétricos, produtos e mais produtos para um mercado sedento e insaciável de tudo o que tinha a marca do way of life europeu ou dos EUA. 
Foi nesse ínterim que entrei na pré escola para, logo depois, iniciar o primário. Mudamos de casa e tive de mudar de escola e a honra de participar da última turma de uma que, em sua única sala de aula, coabitavam diferentes níveis sob a batuta de uma professora, aquela que se tornaria, logo de saída, no modelo que eu seguiria na minha vida de professor. 
Terminei o quarto ano e fiz meu exame de admissão ao ginásio (algo que poucos anos depois também acabaria) e, mau classificado, fui estudar no noturno. Posso considerar, igualmente, que participei de uma das últimas turmas do tal do ginásio e, certamente, minha classe foi a última a ter de estudar latim. Era 1964 e os dias se arrastavam. Os militares prometiam reformas e o primário se juntou com o ginásio, o exame de admissão virou coisa do passado, chegou a licenciatura curta e alguém imaginou que História e Geografia poderiam ser ministradas por quem não tinha formação suficiente em nenhuma das duas áreas, nascendo assim os Estudos Sociais. De outro lado, química, física e biologia se materializavam com o nome de Ciências. A escola serviu, neste caso, para a consolidação da ideia de que História e Geografia não são ciências, que ambas tratam exclusivamente de questões sociais e, com tudo isso, foi-se criando uma espécie de limbo epistemológico, onde a ideia de ciência se resumiu a tudo o que, de uma maneira ou de outra, poderia ser matematizado. Os militares trouxeram consigo uma escola que se movimentava em direção ao resumo e assim sua expansão e consolidação foi demonstrando o que estava no ideário do movimento geral de transformação de nosso país. Não é preciso muito esforço para identificar no papel da instituição escolar o retrato sintético do que se costuma chamar de cultura. 
Quem duvida que a oferta de vagas nas escolas brasileiras se expandiu exponencialmente, ampliando-se para muito além do crescimento demográfico? Quem duvida que a redução dos custos na formação de professores permitiu ampliar o número desses profissionais? Quem não se deu conta que parte considerável desses novos professores, vivendo um processo contínuo de descrédito, de redução da capacidade de consumo, de conjugação entre a pressão dos processos migratórios e a possibilidade de se ter um emprego urbano, foram os personagens responsáveis pelo processo sistemático de consolidação da cultura urbano-industrial, sendo, em grande maioria, eles mesmos figuras distantes de possuírem os saberes que deveriam ensinar?  Quem duvida que a transformação do saber escolar, de um dilema de caráter epistemológico em dilema de caráter pedagógico, tenha feito parte desse ideário reducionista de construção do que Ruy Moreira chamou de urbe sem urbanidade? Afinal, o que nos levou a crer que é mais importante discutir o “como se ensina” que “o que se ensina”? No final desses questionamentos, de caráter iminentemente retórico, fica mais uma pergunta: quando foi que esse movimento reducionista parou e, se isso ocorreu, o que está em jogo com a presença medíocre das chamadas áreas do saber, algo pomposo e vazio de fundamento, que agora vai se transformar nos livros didáticos comprados pelo FNDE e, como sempre, ponto de partida para a organização de grande parte das escolas privadas? E assim, as chamadas elites terão de engolir o veneno que foi criado para as populações mais pobres, mas, sem dúvida, o farão com mais pompa.
Vale considerar que muitos são os Olavos de Carvalho que constroem cotidianamente nosso ideário de sociedade. Esse herói de triste figura, fácil de criticar em função do alarde que faz de sua própria mediocridade, tem muitos detratores, e é nesse grupo, me parece, que se reproduz sub-repticiamente os fundamentos gerais da mesma ideologia ou, o que é mais perigoso, de sua ausência aparente.
Voltemos. Estávamos observando que a partir dos anos 60 (é preciso dizer que estou me referindo ao século XX?) nossas cidades cresceram aceleradamente. Do algo em torno de 50% de população rural em meados do século passado, nos dirigimos à assustadora cifra de quase 90% de população urbana nesse final de década. Isso sem contar que nos mesmos anos 50 beirávamos os 50 milhões de brasileiros e que agora somos aproximadamente 200 milhões. 
Assim, enquanto as cidades incham e o asfalto representa a chegada do que se considera civilizado, os cinemas desaparecem, os teatros não se multiplicam, os terrenos baldios se tornam centros comerciais, parques e praças parecem investimento sem retorno, as ruas se tornam perigosas, brincar é assistir televisão ou jogar vídeo games, a classe média se esconde em condomínios fechados, se desenvolve o processo de escurecer os vidros dos automóveis e, voltando ao ponto, as escolas representam uma das poucas, senão a única, maneiras de acesso à cultura, por vezes associada ao processo de ascensão social, por vezes com o objetivo de tirar o jovem da rua, porque a rua não é o lugar do público, é o lugar da educação sem controle, é o lugar do vício, é o lugar onde nossos filhos não deveriam estar.
E assim fomos mudando... algumas dessas transformações foram radicais e, dentre elas está a maneira pela qual hoje se realiza a Geografia do processo de produção e reprodução da vida em nosso país, isto é, houve uma verdadeira revolução de caráter fascista na significação e ressignificação dos lugares. A transição que tentou por fim à sociedade escravista do século XIX, o fez enquanto um golpe de elites, indo em busca da constituição do último bastião da miséria na forma do trabalho assalariado. Outras mudanças tiveram mais o sentido de reformas no tipo e na cor das maquiagens que, propriamente, revoluções. Assim, se escolarizar é preciso, tal pressuposto em nada se parece com a socialização do acesso aos diferentes formatos da produção e reprodução da cultura. O que nos marcou foi o isolamento, a ausência, o resumo e a impossibilidade de se propor um projeto alternativo.
No limite, e nos dias de hoje, nossas elites nos presenteiam com uma Base Nacional Comum Curricular, dando continuidade ao projeto de sociedade que já estava em pauta quando se inventou os Estudos Sociais e, por fim, alguns de nossos autores já se auto censuram com medo dos Olavos de Carvalho avaliadores do Ministério de Educação e, quando não é o caso, fica o terreno escorregadio para algumas editoras, que se auto justificam com os mesmos medos quando exercem o poder de censurar antes mesmo que o Estado o faça. Sabemos quando a violência se institucionaliza quando obedecemos sem que ninguém precise dar ou receber qualquer ordem... o que talvez tenhamos perdido do horizonte é que nos comportamos assim, levando em conta os projetos que se iniciaram nos anos 60, desde há décadas. Nessas revoluções todas, não só perdoamos os assassinos e torturadores, mas lhes demos nossa benção em nome de garantir a democracia.  
Talvez seja por isso que vejo com certo romantismo os tempos em que ainda se permitia que uma criança andasse pelas ruas e, vez ou outra, eu saia com meu pai para panfletar a candidatura do Marechal Lott ou escutar, com algum fascínio e pouco anos depois, o João Goulart explicar aos trabalhadores o que seriam as reformas de base. 
Caros amigos, é preciso ir além da crítica (ou, em outras palavras, do ordenamento criterioso do pensamento), é preciso construir projetos que possam fazer sentido para as pessoas e, quando pensamos na escola, tal chamamento é de uma urgência brutal. É preciso que a escola abandone esse projeto reducionista de ensinar prioritariamente gramática  e rudimentos de matemática. É preciso que as tornemos um semeadouro de grupos de teatro, música, pintura, literatura e cinema. É preciso que saiamos às ruas e que transformemos o observado em discursos na forma de poemas, de contos, de mapas, de fotografias, de leituras históricas e geográficas sobre o mundo. É preciso que a gramática ou a matemática tenham mais sentido que o simples produtivismo e a preparação para o trabalho assalariado. Tais conhecimentos devem se tornar o que de fato são: ferramentas que utilizamos para organizar nosso discurso sobre o mundo que conhecemos e que isso nos permita avançar sobre aquele que ainda não conhecemos. Neste momento, enfim, é preciso que as escolas se dirijam às ruas, para que, dentro de algumas décadas, as formas de referência e produtividade cultural se multipliquem e a escola possa ser, outra vez, somente mais um, entre tantos, lugar da cultura. 
Enfim, precisamos conversar sobre isso, sem nos perdermos no oficialismo das reformas curriculares. Trata-se de colocar a escola sob a tutela dos movimentos populares e, portanto, entregar a formação de nossos filhos a nós mesmos e não ao Estado. Trata-se de uma luta política que envolve construir projetos, definir objetivos, organizar saberes e compreender que à medida que nos apropriamos dos conhecimentos disponíveis, acessamos as estruturas epistemológicas que os constroem e, portanto, passamos a pertencer, em diferentes escalas, à civilização que nos foi legada e na qual temos a condição de construir sua própria superação, construindo outras cidades, outros campos, outros trabalhos, outros saberes, outros amores e, em meio a isso, outras escolas.