quarta-feira, 5 de abril de 2023

Aquiles, tartarugas e Geografia.

 


Lendo um texto de Hegel[1] (Lições sobre a História da Filosofia, em uma tradução livre para o português), me deparei com os comentários do grande filósofo alemão sobre as proposições feitas por Zenon. Tal como devem lembrar todos os que leram os manuais de filosofia (mesmo os mais simples), o pensador grego nos propôs que se Aquiles fosse correr contra uma tartaruga, jamais a alcançaria. A explicação é simples: antes de alcança-la, Aquiles teria de superar a metade da distância que o separa de sua concorrente. Antes disso, logicamente, ele teria de superar a metade dessa metade e, claro(!), para fazer isso teria de superar a metade dessa última metade... e assim infinitamente. Bom... considerando que o infinito não é transponível, conclui-se que Aquiles jamais ultrapassará a tartaruga e daí a ideia de que o movimento não existe, ele é uma ilusão. Como se vê, alguns filósofos se dedicam a desvendar a ilusão que é a nossa vida (desculpem, o comentário foi irresistível). 

Pois bem... Hegel se debruça sobre este conhecido “paradoxo de Zenon” e imagina um diálogo onde a proposição seria mais ou menos assim: considerando que um objeto qualquer se desloca de um ponto A para um ponto B e onde estará o objeto? Na sequência ele imagina uma serie de respostas, dignas do chamado senso-comum: o objeto está em um ponto qualquer entre A e B; o objeto está em A’ e assim por diante. Frente a todas as respostas imaginadas, Hegel não deixa dúvida: se o objeto está em um ponto, então ele está parado e não em movimento. Assim, ele vai propor que qualquer resposta que possa se aproximar à solução do problema proposto ela teria de ser formulada mais ou menos assim: o objeto está em um ponto qualquer entre A e B deixando de estar. É justamente o adendo “deixando de estar” que, segundo Hegel, preservará a noção de movimento proposta originalmente pelo problema e, consequentemente, superando o paradoxo de Zenon.

Com tais lembranças passei a imaginar que o paradoxo de Zenon poderia, facilmente, ser proposto para o sentido de localização que nos indica a utilização das chamadas coordenadas geográficas e, consequentemente, o fato de que tal noção de localização poderia facilmente se desdobrar no mesmo paradoxo de Zenon, só que agora indicado pelo cruzamento de duas linhas e não mais aquela que indicaria a distância entre Aquiles e a tartaruga. Mais uma vez, portanto, o movimento seria a mais pura e simples ilusão.

De toda maneira, os gps, principalmente os que utilizamos para nos ajudar nos nossos deslocamentos cotidianos, estão sempre nos indicando que “estamos deixando de estar” e , por isso mesmo, mais facilmente respondem à reflexão feita por Hegel, no sentido de preservar a noção de movimento enquanto um dado do referenciamento de lugar geométrico. Vale lembrar aqui, só a título de ilustração, a proposição corroborada pelo filósofo de que uma linha é um ponto em movimento, um plano é uma linha em movimento e, finalmente, um sólido é um plano em movimento.

Voltemos. O que tal referenciamento, no entanto, é insuficiente, pois o sentido geométrico está muito distante de responder pelo sentido geográfico de lugar, mesmo que, de uma maneira ou de outra, possa nos ajudar a construir aspectos de uma resposta. O lugar geográfico é aquele que nos permite reconhecer o onde de cada elemento na realização de um processo determinado e, no caso, tal “onde” se define para muito além da geometria, considerando que ele (o onde) está associado à maneira pela qual os elementos se interdeterminam, e é tal processualidade que define o significado de cada elemento no desenrolar do processo enquanto tal. 

A diferença é brutal: enquanto as coordenadas partem do princípio de que nosso planeta é uma esfera perfeita e toda e qualquer significação de lugar tem como referência algo que não se movimenta, o gps vai nos ensinando que nos deslocamos sobre um fixo[2]. A Geografia, no entanto, ao considerar a necessidade de se desvendar os processos, desvendando o jogo de determinações associado ao lugar de cada elemento que o compõe, deve considerar que todo processo é, ele mesmo, um ser deixando de ser e, portanto, provocando uma redefinição constante de seus elementos, de seus significados e, por consequência, da identificação do lugar.

Por fim, no sentido de uma proposição: a Geografia não estuda o espaço, ela estuda os processos e, para tanto, tem como referência a identificação do significado que o estar  de cada elemento que os compõem possui na sua definição. É uma relação direta com o fenomênico na escala do ecúmeno e, portanto, um sistema de referenciamento da sociedade que pergunta (onde estou? Onde estamos?) enquanto elemento do processo que a define e, portanto, a localiza. 



[1] HEGEL, G. W. F . Lecciones sobre la História de la Filosofia. 3 vols. México:  Ed. Fondo de Cultura Económica, 1985.

[2] Considerando que o fixo também se movimenta, o gps nos posiciona nos obrigando a abstrair o jogo de determinações que nos dá, de fato, a condição de estar e, portanto, sermos, nós mesmos, um lugar.

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